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segunda-feira, 28 de agosto de 2023

 A Casa dos Lilases


I

Não só se amam pessoas. Amam-se coisas, também. E momentos. Tempos passados, já que o presente se nos esvai entre os dedos sem que nos demos conta disso. E pode-se morrer de amor. É uma morte lenta, pode durar anos e anos, e ainda que se mantenha permanentemente um sorriso de doçura na cara, é de uma angústia desesperante para quem acompanha esse processo de alheamento progressivo até que a pessoa se esvai, se dissolve, se esfuma, desaparece de cena sem ruído nem dor nem sofrimento...como se as suas partículas se fossem juntar ao que mais amou em vida.
A minha avó, Amélia, morreu no dia 6 de agosto de 1963 em pleno verão de cores agressivas e brilhantes, denso e quente, no seu quarto, rodeada de coisas que evocavam e recordavam a razão de ser da sua vida: o amor. Se calhar devia escrever esta palavra com maiúsculas e em negrita, o AMOR. Melhor assim. Passaram 60 anos. Só agora o consegui perceber. Só agora sou capaz de o dizer. E agora preciso urgentemente de passá-lo ao papel antes que e transforme em absurdo e deixe de fazer sentido, pela fria e implacável realidade dos tempos que correm.
Isto não é uma novela nem um romance ou um conto, uma biografia. É um ensaio. Sobre o amor. O AMOR, como decidido antes. É um ensaio porque não sei se existe alguma maneira especial, alguma estrutura narrativa que apoie este relato onde se pretende guardar cores, vivas, esbatidas, veladas, sombras, cheiros, sensações, imagens, palavras, vozes, olhares, recordações, lugares, sensações, até mesmo a meteorologia, o frio, o calor, a respiração, os suspiros, os gritos...as memórias que tenho foram arquivadas sem tino nenhum, sem cuidado, da maneira como sou, "depois faço isso" e até hoje, quando decidi que não podia esperar nem mais um segundo até gravar, da melhor maneira que sei, esta constatação, hoje tão clara e com tanto sentido sobre uma pessoa que marcou tanto a minha vida sem eu perceber. 
É um ensaio sobre como se pode morrer de amor. Não sei se hoje em dia fará sentido para alguém, que se morra de amor e não por uma pessoa concreta ou devido a uma pessoa concreta mas sim por tudo o que a rodeia. A minha avó amava tudo e todos e isso foi-lhe consumindo a vida até esta se esfumar. Morreu triste? Não, de todo, muito pelo contrário e é aqui que reside o mistério, a particularidade, a estranheza, a singularidade que me levou tanto tempo a identificar, a classificar, a decifrar. O seu sorriso belo e encantador, o seu olhar intenso, profundo, brilhante e pleno de felicidade e a força, a energia com que me apertou a mão no momento em que nos deixou foi para mim, sempre, incompreensível, e mais tarde motivo de ira, revolta, desgostosa, profundamente magoada pela retirada voluntária da pessoa que na altura era a mais importante da minha vida.
Morre-se fisicamente de excesso de amor, fui testemunha disso, embora a causa não seja física mas sim anímica, ligada à forma de ser, de viver, de estar, de encarar as coisas, de as sentir, assimilar, digerir. A cor dos seus olhos era indefinida. "La couleur de mes yeux est changeante...", falava muitas vezes em francês, segundo ela - e eu posso corroborar - a língua que tinha sido escolhida pela Beleza para dela se falar. "L'amour change la couleur des yeux, mon trésor..."
Eu era "son trésor" e só hoje percebo que tesouro era esse. Amou até à exaustão, até essa energia lhe sugar a vida, coisas e pessoas e conseguiu reunir tudo o que era o seu Universo na casa em que eu, por ironia do destino, estou prestes a comprar, se tudo correr bem ainda esta semana, a Casa dos Lilases, a cor com que Amélia se vestiu desde que pode decidir como se vestia, até ao último dia. E foi nesta Casa dos Lilases que foi vivida a história mais bonita que alguma vez existiu sobre o Amor. Quero ser dona desta casa. Não para reviver mas sim para começar a viver. A minha própria história de amor. Embora nem todos tenham a sorte de morrer de amor, todos temos uma história de amor. E nem sempre nos apercebemos disso. Eu só percebi agora e vou tentar explicar porquê e o que é que a minha avó e a sua história têm a ver com isso. É um ensaio.


II



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