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quarta-feira, 23 de maio de 2012

Os meus jacarandás


Aqueles jacarandás
que me cruzam cada dia,
ao virar das esquinas,
são nuvens delicadas
de memórias passadas
vestidas de lilás.

Frascos de cristal e prata
doirados de perfumes
secos, gastos e refinados
sobre mármore rosa pulido
pentes de osso e marfim
enfeitam escovas de javali
sob o olhar doce e perdido
da Virgem de talha pintada
reliquia venerada
de jóias adornada.

Sopra a brisa
pela cambraia fina
de renda trabalhada
e agita o lilás,
no solitario que guarda
a imagem passada
de um amor desvanecido
cai a pétala delicada
sobre folhas de seda
amarelada
de um livro de orações,
colares, pedras, brasões,
lenços bordados, alinhados
em caixas de cetim
penas, plumas e coxins
a ouro fino debruados,
sedas doces, perfumadas
flores pálidas espalhadas
pelas imagens espelhadas
na memória de um tempo
vestido de lilás
em cada esquina
de cada dia
naqueles jacarandás.

O rio que sou


Que infantil
esta forma de saltitar,
do sentir
para o pensar,
e colher
a beleza pueril
a florescer
à beira das gargalhadas
de cristal
a fluir
entre as sombras
pontiagudas
da minha alma.

terça-feira, 22 de maio de 2012

ODE À VIDA


Amo a vida! Adoro quando ela se manifesta numa gargalhada sonora, num abraço espontâneo, numa zanga monumental, num erro crasso, numa angústia corrosiva, numa espera ansiosa, num trabalho suado, numa conversa profunda, numa decepção monstruosa, num silêncio desgastante, numa mão estendida, num conselho avisado, num projeto partilhado e num beijo sem fim. Adoro quando ela nos deixa uma noite acordada a pensar e nos obriga a melhorar e nos desafia sem cessar a superar o impensável e inimaginável e nos transforma num alguém que ainda ontem não levávamos dentro de nós. Adoro entregar-me, vestir causas e partilhar entusiasmos, emocionar-me até à medula e sentir o nó que aperta a garganta e se prolonga e prolonga e não tem fim. Adoro essa vida que nos acorda primavera e deixa de ser colorida sem sabermos porquê e se descose ao entardecer pelas costuras numa torrente de lágrimas que encharcam, resfriam e constipam o dia de amanhã. Adoro caminhar lentamente a tristeza de uma ausência e sentir como nos enche o coração de saudade, adoro recordar e reviver momentos passados num sorriso que ilumina a alma, reencontrar pessoas, coisas, sítios, músicas, letras, palavras, vozes e encher delas os pensamentos pachorrentos de uma tarde de verão. Adoro amar tudo o que se cruza no meu caminho e me agarra com dois braços abertos e enche a noite de ternura e os dias de cumplicidade e dói quando se ausenta e atormenta quando se escapa. Amo demais os mundos escritos aprendidos de palavras com que forrei e enchi o meu próprio Universo e é nelas que espalho e espelho com delícia e prazer as cores, a música e os sabores das vozes da minha alma.  Adoro dar tempo e um compasso de espera à vida que se apressa a ser consumida no imediato e a deixar para amanhã o que poderia ser feito hoje e antecipar o que grita para ser deixado uns dias em cima da mesa, surpreender e ser surpreendida pelo que não espero, ficar sem voz, ficar sem fôlego, ficar sem forças e abraçar o milagre até ao café da manhã. É isso a vida, só assim sei viver e quero escrever os dias de mim, um atrás do outro como se tudo fosse acabar no segundo a seguir, entregue ao que sou, amando como sei, dando o que não concebo, assinando tudo o que faço sem nada negar ou esconder e de nada renegar porque vida há só uma, aquela a que Deus deu a bênção do meu nome e a competência para a ser.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Hoje faz sentido: Viagem ao desespero

Viagem ao desespero

Há dias em que o desencanto nos encharca a alma. Em que parece impossível vencer o desespero, encontrar coragem e serenidade para arrancar a força e o alento suficientes e continuar a lutar pela escolha feita. Em que a maior crueldade é pôr em dúvida se a convicção não será, afinal, um capricho, o empenho, puro quixotismo, o valor que sabemos que temos, ridícula presunção e a boa-vontade, servilismo.
Há vezes em que é tão fácil sentirmo-nos destruídos e ruirmos como um castelo de cartas. Dizem que é possível desenvolver mecanismos resistentes ao tiro certeiro na alma. Talvez. O que acontece é que por vezes há circunstâncias, factos, acontecimentos e até decisões que tomamos que dão por nós sentados à nossa beira a recolhermos os nossos cacos.
Nesses dias não há conselho avisado que indique o caminho acertado, experiência útil que guie à solução nem mão amiga que suavize a solidão. Há dias assim, na vida. Não vale a pena a pretensão de querer ser o herói que não se é. A honestidade de ser-se vulnerável e de estar eternamente mal preparado para esquivar tiros certeiros ou bombardeamentos massivos, acaba sempre por vir ao de cima e é com ela que há que acabar os dias da nossa vida...
São dias em que a solidão e o desespero obrigam a descer ao âmago de nós próprios e a enfrentar a complexa obra de engenharia que nos sustenta e anima. E para alguns é reconfortante constatar, uma vez e outra, a solidez dos materiais de que somos feitos, a precisão dos mecanismos que nos guiam e a fiabilidade dos sistemas de segurança que garantem a nossa blindagem às maiores intempéries da vida. É nestes nossos fundamentos que - se são sólidos e indestrutíveis -  há que ir buscar de novo a fé em nós e nas escolhas que fizemos e reconstruir tudo o que nesses dias, parecia impossível de ser refeito e recuperado. Não é uma viagem de recreio nem um passatempo agradável. Nem sequer está garantido que seja um êxito. Mas é neste depósito que residem as coordenadas da viagem que empreendemos. Quando se perde o rumo, há que procurá-las. Encontrá-las e seguir em frente, renovado. Ferido mas sobrevivente. E quando se é sobrevivente, a vida tem outro sabor. 





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