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terça-feira, 20 de março de 2012

A cruz de um pai odiado

O pai odiado é uma cruz especialmente pesada que se carrega na vida. Porque o ódio é uma cruz. E o ódio ao pai fá-la especialmente pesada. A cruz do ódio existe e por vezes está de tal maneira encrostada na nossa alma que nem sempre a vida nos oferece as condições ou o tempo para limpar essa sombra. Mas vale a pena tentar. É um enorme desafio ao nosso ser e a todas as nossas capacidades. Mobiliza-nos por inteiro, faz apelo a todos os nossos recursos. É uma verdadeira empresa. Que exige ultrapassar o ódio? Compreensão do outro a quem odiamos? Compaixão? Amor? Humanidade? Sem ser necessário descer à profundidade que nos propôs Cristo: "Dá-lhe a outra face", é possível ultrapassar o ódio se pensarmos que o ódio é um sentimento de repulsa e negação do outro que só existe quando essa pessoa não nos é indiferente. Se fosse, o ódio não existiria...Está no polo oposto do amor...Porquê ter ódio? É por aí que se começa: pela interrogação: por que razão esta pessoa me faz sentir ódio? É por isso que eu penso que o ódio é uma cruz. Porque na base do ódio existe um amor traído, magoado, negado, talvez. O segundo passo é perceber o que aconteceu para que esse ódio se criasse e manifestasse de uma forma violenta? Por vezes é simples identificar as razões: traições, desfeitas, desilusões...o catálogo pode ser mais ou menos extenso...mas nunca nos deixa indiferente. Mas eu não queria falar de um ódio qualquer. Eu queria falar do ódio ao pai. Que não nos amou como queríamos, esperávamos, desejávamos. Que despertou, fosse lá porque fosse, essa rejeição brutal que nos leva a desenvolver em relação a ele um sentimento cristalizado de um só registo: ódio. Com ele convive esse amor inato que temos pelo pai que nos traíu ou que traíu o nosso amor. Mas o amor existe porque o ódio, por muito forte que seja, jamais terá a capacidade de destruir o amor. Senão não seria ódio, seria indiferença. Recuperar esse amor é assumir a cruz. Parece difícil. É com certeza. Como se assume a cruz? Aceitando que paralelamente ou no polo oposto do ódio levamos dentro esse amor que não deixou de existir. E se realmente queremos que ele se sobreponha ao ódio há que preenchê-lo com algo. E só se preenche o amor com perdão. "Meu Deus perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem"...Sabemos perdoar à pessoa que odiamos? Sabemos, sim. Se soubermos chegar ao perdão, a esse lugar onde sentimos que tudo aquilo que nos fizeram - o que o pai odiado nos fez - foi porque não sabia o que fazia...sabemos. E não se trata de não saber, no sentido de não ter consciência. Ainda que a tivesse, pode ser perdoado porque estava errado. Meu Deus, perdoai-lhe os erros. As pessoas erram, estão no caminho errado, por vezes. É humano, diziam os romanos. É humano. Magoam? Sim. Conscientemente? Algumas vezes sim. É especialmente grave quando se trata do pai? Claro que é. É uma cruz levar o ódio ao pai às costas. Ninguém disse que era um caminho de rosas. Mas, volto ao mesmo: se odeio, amo. E se amo e não erro tanto como aquele a quem odeio, tenho a responsabilidade acrescida de ser melhor do que aquele que não nos amou como queríamos, gostávamos e desejávamos. E se amo, perdoo. Inspirada por essa exclamação de Cristo na cruz: "Meu Deus, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem". Perdôo ao meu pai que tanto odiei? Claro que sim. Claro que sim. Porque eu não quero levar essa cruz a vida toda. Quero substitui-la por esse amor que existe e que foi talvez traído por tudo o que ele me fez ou fez. Ele errou. E eu vou amá-lo por isso mesmo. E penso que pondo de lado os erros, eu terei uma maior capacidade para ver as coisas que nele houve de boas. Que certamente terão existido. Dissipada a núvem, limpa a planície, os meus olhos podem ver mais longe: e aí eu vou começar a construir, juntamente com o perdão dos erros, um amor ao pai. E a cruz torna-se mais leve. E surge uma coisa, outra e outra. Qualidades que tinha, gestos, sorrisos, atenções, preocupações...Vai ser possível a reconciliação. E no dia do pai, que foi ontem, é possível olhar para o pai que já não está e dizer, como todos: "Que saudades". Até porque, provávelmente, as saudades o que querem dizer é simplesmente: "Pai, hoje estaria disposta a perdoar porque o que quero é ter, como toda a gente, um pai. E pai...há só um. É o pai!". E ele, esteja onde estiver, irá sorrir e tenho a convicção de que uma lágrima lhe cairia pela cara abaixo.

Advertência: Não estou a falar do meu pai nem de mim. Mas sim de uma pessoa que me é muito querida e que infelizmente sente isso. Espero ter sido útil!

3 comentários:

  1. Há casos e casinhos! ...gestos, sorrisos, atenções, preocupações... há casos em que não se consegue vislumbrar nem um, mesmo passando muito tempo e com a tendência que a separação (morte) tem para endeusar quem partiu. Graças a Deus não foi o meu caso, bem pelo contrário, mas também conheço que o único pensamento que tem em relação ao pai, é amargura.

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  2. "Pai, hoje estaria disposta a perdoar porque o que quero é ter, como toda a gente, um pai. E pai...há só um. É o pai!" - mas o pai já cá não está para me amar e compensar o desamor duma vida inteira...
    Obrigada, Carminho, gostei muito deste seu post. (lembra-se de mim?)

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    1. Olá Ana. Desculpe só ter respondido agora. Queria tè-lo feito antes mas fui adiando, adiando. Mas não passa de hoje. Lembro-me de si, sim. E da sua mãe e do seu pai. E gostava de saber mais, agore, porque nunca é tarde para conhecer alguém, sobretudo quando essa pessoa se entronca na nossa infância e nos está ligada por referências fortes. Conte-me mais de si. O que faz? Onde vive?

      Até breve.

      Um beijinho

      Carminho

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