Viver acaba por ser o processamento de um conjunto de dados.
Podia até ser um daqueles cartões perfurados das antigas máquinas de cálculo.
Sentados algures na linha do tempo, nos bastidores de nós próprios, a nossa
consciência iria fazendo buraquinhos atrás de buraquinhos, com pachorra ou sem
ela, de uma maneira sistemática, segundo a segundo, hora a hora, cada dia,
todos os meses, ao longo dos anos. Por vezes há tempo e a necessidade de nos
sentarmos com o perfurador do nosso cartão de dados da vida, à lareira de uma
boa conversa de pão, queijo e vinho tinto, e fazer um balanço. "Olhe para
ali, amigo, vê aquele buraquinho, ali naquele dia?" E sentados com aquele
formato de papel que não existe no Stapples no colo, poderiamos verificar, com
uma aterradora certeza, a importância decisiva que aquele furinho, feito naquele
dia, àquela hora, talvez distraídamente, talvez inconsequentemente, quem sabe
se não por inércia, preguiça..."egoísmo, amigo, egoísmo..." -
sentencia o perfurador, cruzando os braços atrás da cabeça e enconstando-se,
comodamente, no cadeirão de bombazina moldado a um conforto puído pelo uso.
Baixo de novo o olhar sobre a manta da vida inexoravelmente perfurada e sigo em
silêncio o itenerário vital daquele furinho... E vejo como o caminho, a partir
daquela origem, se foi complicando, desmultiplicado por outros rumos, a maioria
deles desembocando em becos sem saída, impasses, ruturas, volta atrás, começa
de novo, energias perdidas, planicies sem horizontes, desertos de solidão,
papel branco sem notícias, sem dados relevantes, sem sentido, silêncio...
 "Pois...mas
outros há dos quais te podes orgulhar, não te atormentes...queres ver?"
 Mas eu não quero.
Estas análises frias de dados amachucam, deixam um sabor amargo na boca que
inviabiliza qualquer outro sabor que faça sorrir. Existem tantos furinhos na folha
da minha vida como aquele que o amigo dos bastidores me mostrou...tantos em que
podia ter feito, podia ter dito, podia, podia, podia e podia...e não fiz, não
disse, não evitei. E são estes momentos que contam, afinal. É neste cruzamento
de hipóteses futuras que se vai escrevendo a vida, furando rumos, momento atrás
de momento, minuto a minuto, cada dia, no vértice de uma pequena decisão sem
importância...volto para o meu cenário e a consciência de que posso mudar o
rumo ao cartão de dados que o perfurador que Deus me adjudicou vai gerindo de
acordo com as minhas decisões, atenua-se, esbatece-se e esmorece sob o peso da
lucidez que afinal não tenho, da inércia em que me instalei, do egoísmo do qual
não me liberto, das desculpas que me corrompem a vontade, das ocupações que me
sugam, da cobardia que tento ocultar, do espelho de mim que evito enfrentar.
Engano-me se penso que posso apagar este meu ativo de dados perfurados com uma
simples confissão ou até pelo arrependimento, que pode ser genuíno. Nem sequer
a escrita serve, quando às vezes até pode ser um ponto de partida. Afinal, para
que serve tanta análise, tanta lucidez, tanta consciência, se ante o inexoravel
perfurar do cartão de dados que é a vida, não sou capaz sequer de evitar esse
conjunto de furinhos falsamente irrelevantes que me conduzem sistematicamente a
este beco vital de uma angústia sem saída...apesar do sol estar a brilhar e dos
meus jacarandás me estarem a sorrir uma luz doce e serena, ali da minha
varanda, filtrada através da renda tão delicada dos seus braços.
 
 
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