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domingo, 13 de outubro de 2013


Viver acaba por ser o processamento de um conjunto de dados. Podia até ser um daqueles cartões perfurados das antigas máquinas de cálculo. Sentados algures na linha do tempo, nos bastidores de nós próprios, a nossa consciência iria fazendo buraquinhos atrás de buraquinhos, com pachorra ou sem ela, de uma maneira sistemática, segundo a segundo, hora a hora, cada dia, todos os meses, ao longo dos anos. Por vezes há tempo e a necessidade de nos sentarmos com o perfurador do nosso cartão de dados da vida, à lareira de uma boa conversa de pão, queijo e vinho tinto, e fazer um balanço. "Olhe para ali, amigo, vê aquele buraquinho, ali naquele dia?" E sentados com aquele formato de papel que não existe no Stapples no colo, poderiamos verificar, com uma aterradora certeza, a importância decisiva que aquele furinho, feito naquele dia, àquela hora, talvez distraídamente, talvez inconsequentemente, quem sabe se não por inércia, preguiça..."egoísmo, amigo, egoísmo..." - sentencia o perfurador, cruzando os braços atrás da cabeça e enconstando-se, comodamente, no cadeirão de bombazina moldado a um conforto puído pelo uso. Baixo de novo o olhar sobre a manta da vida inexoravelmente perfurada e sigo em silêncio o itenerário vital daquele furinho... E vejo como o caminho, a partir daquela origem, se foi complicando, desmultiplicado por outros rumos, a maioria deles desembocando em becos sem saída, impasses, ruturas, volta atrás, começa de novo, energias perdidas, planicies sem horizontes, desertos de solidão, papel branco sem notícias, sem dados relevantes, sem sentido, silêncio...

 "Pois...mas outros há dos quais te podes orgulhar, não te atormentes...queres ver?"

 Mas eu não quero. Estas análises frias de dados amachucam, deixam um sabor amargo na boca que inviabiliza qualquer outro sabor que faça sorrir. Existem tantos furinhos na folha da minha vida como aquele que o amigo dos bastidores me mostrou...tantos em que podia ter feito, podia ter dito, podia, podia, podia e podia...e não fiz, não disse, não evitei. E são estes momentos que contam, afinal. É neste cruzamento de hipóteses futuras que se vai escrevendo a vida, furando rumos, momento atrás de momento, minuto a minuto, cada dia, no vértice de uma pequena decisão sem importância...volto para o meu cenário e a consciência de que posso mudar o rumo ao cartão de dados que o perfurador que Deus me adjudicou vai gerindo de acordo com as minhas decisões, atenua-se, esbatece-se e esmorece sob o peso da lucidez que afinal não tenho, da inércia em que me instalei, do egoísmo do qual não me liberto, das desculpas que me corrompem a vontade, das ocupações que me sugam, da cobardia que tento ocultar, do espelho de mim que evito enfrentar. Engano-me se penso que posso apagar este meu ativo de dados perfurados com uma simples confissão ou até pelo arrependimento, que pode ser genuíno. Nem sequer a escrita serve, quando às vezes até pode ser um ponto de partida. Afinal, para que serve tanta análise, tanta lucidez, tanta consciência, se ante o inexoravel perfurar do cartão de dados que é a vida, não sou capaz sequer de evitar esse conjunto de furinhos falsamente irrelevantes que me conduzem sistematicamente a este beco vital de uma angústia sem saída...apesar do sol estar a brilhar e dos meus jacarandás me estarem a sorrir uma luz doce e serena, ali da minha varanda, filtrada através da renda tão delicada dos seus braços.

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