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sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A tomada da Bastilha na Catalunha

Basta um rastilho para que a Catalunha tome a sua Bastilha. Não serão certamente os últimos, na História, a fazê-lo. Todos os povos, independentemente do sistema que os governa num determinado momento, têm direito a protagonizar a sua tomada da Bastilha. Dificilmente exista quem possa recusar, em abstrato, esse direito pois não só estaria a trair a sua própria História como estaria a arrumar-se nas fileiras de quem, por recusá-lo, passou à História como o vencido.
Em Portugal houve várias tomadas da Bastilha, a última, no dia 25 de abril de 1974. Mas também é uma tomada da Bastilha o Brexit, por exemplo. E foi-o assalto ao Palácio de Inverno, o desembarque na Normandia, a declaração de independência dos países bálticos ou da Eslovénia, a eleição de Trump. Não é pois, necessário, que uma multidão se dirija ao símbolo da opressão e o tome de assalto como aconteceu no dia 14 de julho de 1789 em Paris para que estejamos perante a tomada de uma Bastilha, que significa uma viragem abrupta no curso da História de um povo que, depois de consumada, foi aceite por todos.
Legítimo? Ilegítimo? De pouco serve fazermos esses debates pois a História ensina-nos que as tomadas da Bastilha acontecem e o quanto é fácil estar hoje do lado dos malfeitores e amanhã do lado dos heróis. A 20 de abril de 1974, os capitães de abril eram os malfeitores, 5 dias depois eram imortalizados com os seus cravos encarnados sentados em cima de máquinas de guerra. Quem pode afirmar com toda a certeza de que o regime de Marcelo Caetano não teria evoluído para uma democracia como o fizeram os espanhóis em 1975, harakirizando o regime franquista? Ninguém. Se calhar teria sido melhor para o país...who knows. Seja como for, os Capitães hoje são heróis porque arriscaram a tomada da Bastilha e conseguiram tomá-la. Senão...seriam malfeitores.
Hoje, Carles Puigdemont e os 2 milhões de catalães são certamente os malfeitores e separa-os de ficarem imortalizados para a História, uma tomada da Bastilha: este recurso intemporal, imprevisível, impensável e muitas vezes indesejável que assiste a todos os povos de fazer uma viragem abrupta no curso da sua História. Se conseguirem tomar a Bastilha, serão heróis.
E o que digo é que não falta muito para que a consigam tomar.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A turbulenta história dos senhorios e arrendatários do Condomínio virado a sul

Era uma vez um condomínio de 18 andares, sem luxos mas com algum pedigree e história antiga, ajardinado com algum esmero e varandas viradas a sul num promontório em cima do mar. Aprazível, diriam? Podia ser, efetivamente, não fosse o colorido relacionamento dos seus residentes, um óbice? Não, não chegava a ser um inconveniente, diziam, pois ao contrário de outros condomínios frios, porque virados a norte, ali ninguém tinha saltado pela janela, voluntáriamente, pelo menos.
Ora, eram dois os senhorios, um deles o do andar do cimo, o outro o do andar primeiro, dono do seu e dos outros 17 andares, seus arrendatários. A coisa nem sempre tinha sido pacífica, nem entre os dois senhorios, o de cima e o de baixo, nem entre este último e os seus arrendatários mas desde as últimas grandes reformas no Condomínio, para bem de todos, tinham decidido fazer parte da Associação de Condomínios a quem pediam que servisse de árbitro para evitar as guerreolas do passado. Tudo muito civilizado. Houve arraial e festa e o pessoal esteve de ressaca durante umas décadas largas.
Maria e Mário, os do cimo, não eram muito dados a convívio, viviam de olhos postos no mar, sonhadores, à espera que a lotaria chegasse numa noite de nevoeiro e lhes permitisse comprar a tão desejada moradia no meio do campo, rodeada de galinhas, porcos e perus para arejar o pensamento enevoado e tristonho e poder comer umas boas febras depois da matança do porco. Enfim, todo o contrário dos outros 18 moradores, ruidosos e dados às festas, festejos e à discussão, com bofetada ou sem ela, às vezes com algum tiroteio, que levara Maria a esconder-se debaixo da cama e Mário a fechar a porta com um barrote grosso e a ensaiar voz grossa diante do espelho mais para impressionar a Maria do que propriamente para o caso de ter de enfrentar os malucos dos andares de baixo.
Maria bem gostaria que o Mário fosse mais valente, sobretudo quando Manuel, o outro senhorio, desviara a água para regar as plantas dos seus andares mas Mário, nas reuniões do Condomínio, para seu grande desespero, acabava sempre aos abraços depois de uns copos valentes e ela, a culpa também era dela, mas não resistia aos chás da Manuela, mulher do senhorio, sempre tão bem frequentados, tão chiques e espampanantes, num deles até tinham vindo daquela revista ilustrada, o iola, e com isso pudera esfregar o seu fotogénico estatus social na cara da sogra, velha embirrenta que sempre preferira a outra a ela, que gozo que isso lhe dava.
Lá andam outra vez à bofetada...desta vez com os dos 2ºandar, parece que o filho não está pelos ajustes e reclama de novo a propriedade do andar, velhas lutas que os pais perderam mas que nunca acabam, coitados, mas se é mesmo deles...tu livra-te de te meteres no meio disso, Maria. Quanto menos senhorios, melhor e desde que não nos chateiem muito, há é que passar em bicos dos pés à frente da porta deles e que nem te passe pela cabeça dares troco aos inquilinos. Olha que o Manuel nos pode lixar...
Pois pode e pôde e não é que assim fez?
O folhetim continua mas ficam aqui as cenas do próximo Capítulo:
Ele nem pense que me trata como se eu fosse um dos seus arrendatários! Ele que nem pense. Já o meu tetra-avô atirou o tetra-avô dele pela janela e eu sou bem capaz de fazer o mesmo. Tá calado, homem, que ainda tens uma apoplexia...e isso é lenda. Lenda??? Lenda???? Mulher ignorante que tás feita com eles, vociferou de barrote nas mãos, ameaçadoramente!!!! A mim ninguém me pára e abrindo a porta, cavalgou escadas abaixo...
Pegará Mário no barrote que lhe trancava a porta e lhe dá na cabeça a Maria? E será verdade que esta teve algum caso com algum dos vizinhos? E estes, que andarão a tramar para que Mário lhe suba o sangue, a glória e a pátria ancestral à cabeça? Onde parará a cavalgada de Mário? No fundo das escadas com um galo na cabeça ou no fundo da cela por ter efetivamente consumado o lendário crime que dá linhagem e consistência à sua condição de senhorio, em pé de igualdade com Mário?
Não perca o episódio que se segue!


segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Analogias poéticas

Há anos que ninguém apanha a fruta daquela árvore e é por isso que aquela que não chega a cair pelo peso do abandono, apodrece languidamente nos ramos e na primavera, à hora de rebentar a flor, não lhe dá o seu lugar impedindo a renovação e o nascimento de novos frutos, melhores que os de anos anteriores que as espécies vão apurando e refinando a sua qualidade quando para isso se as estimula...e os poucos que vão nascendo não têm melhor sorte senão ir definhando lentamente e contaminando a sua desgraça a outros que entristecem por não serem aproveitados para aquela que por ordem de Deus é a sua missão. Até que um dia, a árvore, cansada e aborrecida, deixa de levar a seiva até aos ramos onde também já não há folhas novas, para quê, se já poucos frutos há para proteger da luz impiedosa do sol? E é assim que as árvores que dão frutos vão aos poucos mirrando, envelhecendo sem nunca terem vivido plenamente a sua juventude, que as árvores que dão fruto existem para que estes sejam colhidos na altura certa, cumprindo assim a função que dá razão de ser ao seu misterioso e divino ciclo da vida.

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