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domingo, 1 de abril de 2012

Fernando Pessoa I - o Universo

Fui ver a exposição de Fernando Pessoa. Recomendo vivamente. Com aquele espírito de tolerância com que devemos ver exposições uma vez que a multidão impede-nos sempre o recolhimento que desejaríamos para podermos interiorizar e saborear in locco o que vemos. A vida e obra de Fernando Pessoa exige silêncio...mas enfim...recolhemos o que podemos e uma vez em casa...sentamo-nos à mesa, com um café, e saboreamos o banquete que nos oferece a vida e obra desse génio que sentiu, pensou e escreveu o Universo em português.
Einstein foi um génio. Soube pensar e descrever o Universo através de equações que ainda por cima, na sua quase totalidade, resultaram estar certas. Essa ideia muito dele do Universo surgiu-lhe quando ainda apenas era uma criança e se imaginava, à noite, a cavalgar um raio de luz. Deve ter sido tão poderosa, essa imagem, que a partir dela soube descrever um Universo coerente, em que todos nos revemos, ou pelo menos, sabemos que funciona da maneira como ele o descreveu.
Fernando Pessoa também foi um génio. Multiplicou-se e desdobrou-se para nos explicar que levamos em nós a capacidade para sermos Universais. Para isso basta que nos aventuremos no nosso interior e que nele encontremos e recenseemos os caminhos, os lugares, as formas de ser, estar e compreender o Universo de Ser humano. Ele conjugou um sem fim de Universos humanos, tantos quanto pôde e a sua curta vida lhe permitiram identificar.
Ao deitar um olhar global sobre a obra de Fernando Pessoa - a vôo de pássaro -  o que sinto, vejo, penso, percebo e me digo a mim própria é que existem várias maneiras de compreender e explicar o Universo onde vivemos. Einstein deu-nos uma explicação física tendencialmente global e coerente, à excepção de alguns aspectos que falharam. Fernando Pessoa dá-nos também uma possível concepção global do Universo, mas do ponto de vista do ser humano e não das leis da física. Ambas as concepções explicam o Universo, ambas as perspectivas são válidas e correctas, apenas diferem na perspectiva de abordagem.
E é aqui onde quero chegar porque esta é uma ideia que me persegue há muito tempo e não acabo de conseguir explicá-la de uma forma inteligivel. Proust descreveu o mecanismo da memória sem nunca ter estudado medicina ou neurologia ou qualquer outra disciplina que abordasse o funcionamento do cérebro. Mas fê-lo e acertou. Quem não recorda aquelas extensas passagens do "Du côté de chez Swann" em que o gosto do pedaço de madalena molhado no chá lhe evocam as memórias de uma infância passada em casa da tia avó Léonie em Combray. Hoje a "neurociência" dá razão a Proust e sabemos que os mecanismos da memória funcionam aproximadamente da forma como ele os descreveu.
Com a obra de Fernando Pessoa acontece algo semelhante. O ser humano é um ser universal. Leva inscrito no seu código genético o Universo e nele encontramos todos os mecanismos que o regem. Partilhamos com as coisas e as outras formas de ser vivas uns mecanismos básicos: a física explica-nos que somos todos e tudo é feito da mesma matéria, apenas diferimos no seu agregado: nós, os seres humanos somos mais complexos na medida em que possuímos a consciência de ser. Pelo menos é isso que sabemos. Está para ver se as coisas e os outros seres vivos não humanos também não a possuem...eu penso que sim, mas isso é outra história que me desviaria do objectivo onde quero chegar.
Na obra de Fernando Pessoa encontramos a tentativa de descrever - a morte prematura impediu-o de encontrar a explicação ao que identificou, penso eu - essa faculdade de ser universal que o Ser Humano leva nele: daí os inevitáveis e sucessivos desdobramentos a que se sentiu compelido: nele Fernando Pessoa, o caminho estava aberto para encontrar e viver as inúmeras conexões que o nosso cérebro alberga para sermos. Somos porque dentro de nós, devido a leis físicas herdadas e adquiridas de agregação, as partículas se juntam e se inter-relacionam entre elas de uma forma suficientemente poderosa (as quatro forças físicas: a gravitacional, a eletromagnética, a forte e a fraca) para nos dar uma identidade determinada que nos diferencia de outras milhares, milhões, infinitas possibilidades de sermos. Mas, onde penso que Fernando Pessoa deu um passo em frente foi ao explicar-nos que podemos ser tantos quantos queremos e que, na verdade, apenas depende da nossa capacidade - que nele foi acidental - de querermos ser qualquer...outro alguém, se essa forma de ser diferente nos permite estar de uma forma que nos faça sentido. Na senda de Proust, e outros, Fernando Pessoa viajou no interior do Ser - através da introspecção que nele era poderosa - e viu "com os olhos da alma", o que muitos de nós não conseguimos ver, e descreveu, "com a pluma da arte", como raros de nós conseguiremos alguma vez fazer, na maravilhosa língua que é a portuguesa, como é que essa potencialidade de sermos quem quisermos se consegue materializar.
Deve por isso ser considerado um génio, precursor das descobertas que irão sem dúvida ser realizadas neste século XXI no âmbito da neurociência. Se não fosse pouco, por si só, Fernando Pessoa, nas suas desmultiplicações, produziu o suficiente e o suficientemente coerente para nos dar umas quantas visões do Universo que coincidem com as visões de uma infinidade de pessoas. Embora existam traços comuns entre todos os heterónimos, são o suficientemente diferenciados para que, pessoas diferentes, possam rever-se na forma como cada um desses heterónimos descreveram o que sentiam. Daí fascinar milhões de pessoas no mundo: todos sentimos alguma vez o que ele sentiu e todos conseguimos ver o mundo como eles o descreveram. É certo que a sua "prosa" (prosa stricto sensu e poesia) são difíceis...mas se viermos para casa e soubermos saborear lentamente aqueles versos magníficos...é possível compreendê-los e apreciá-los.
Perder-se com Fernando Pessoa é uma magnífica aventura ao nosso interior. A esse mundo fascinante que é a conjugação entre o sentir, o pensar e o compreender através de todos os mecanismos que possuimos: a lógica, as sensações, as emoções, os estados de espírito...é preciso um certo isolamento para conseguirmos lá chegar. Mas mais do que isolamento, a condição para lá chegar é o "desapossamento" de qualquer "lastro" que nos dificulte ou obstaculize a viagem ao interior: os pré-conceitos. O próprio Fernando Pessoa descreveu essa conditio sine qua non para lá chegarmos:

"Não basta abrir a janela
para vermos os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
e um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela."

Alberto Caeiro ainda vai mais longe:

"Entre o que vejo de um campo e vejo de outro campo
Passa um momento uma figura de homem.
Os seus passos vão com "ele" na mesma realidade,
mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas...."

Muito mais poderia ser dito acerca desta viagem ao interior que Fernando Pessoa fez no curto espaço de tempo em que esteve vivo. Tudo, em Fernando Pessoa, me interessa, me seduz, me distrai, me arrebata, me ensina e me deleita. É um Mestre. Para além de que molda a língua portuguesa com o encanto subtil e a gravidade profunda que encontramos em determinadas obras musicais. As suas poesias são como encadeamentos de acordes musicais que atingem a nossa sensibilidade e a fazem vibrar como se estivéssemos a ouvir música. Para além, é claro, de nos levarem, com o significado que transportam, ao nosso interior e orquestrarem um Universo sinfónico que, há dias, horas e momentos, fazem todo o sentido.

Segue:
Fernando Pessoa II - O Universo na Língua Portuguesa
Fernando Pessoa III - O Universo de ser Português

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