É tão bom ir beberricando a amizade num entardecer de inverno frio, uma claridade apagada, aconchegada, mil e um objetos da vida da S e do P espalhados pelo circulo em que nos sentamos, de costas para a lareira ou recostados nos sofás, à sua frente, observo-os, sigo-lhes os gestos, as vozes, são tão diferentes umas das outras, interrompem-se, sobrepõem-se, discutem, amenas, doces, veementes, incisivas, escorregam para a gargalhada, zombeteiras e trocistas, brilham, suspensas por três pontos de silêncio e regressam, todas ao mesmo tempo, refaz-se, é como sempre e sempre foi, mas está sempre por fazer, abstraio, há uma cadência, um vai-vem conhecido, uma sonoridade familiar que se re-inventa, uma síntese, um resumo, uma aura que vai cobrindo os momentos, as conversas, as memórias, vem detrás, é tecida pela tarde fora, somos retalhos, ingredientes, fios, cores, palavras, porque não um substantivo e um adjetivo, cada um, acendo um cigarro, sorrio só para mim e começo, a generosidade sorna do T, a energia vital da I, a eloquência taxativa do Z, a serena picardia da G, a simplicidade carinhosa da Z, o humor zombeteiro do M, a autenticidade lavada do R, S e P e o seu brilho bonacheirão...e os que não estão, a jovialidade irrequieta de F, a prudência atenta de A, a ironia calada do C, a complexidade perturbadora da C, há tanto tempo...passa um anjo, é hora de ir andando e para quando? E onde? imagina-se, sugere-se, rebate-se, discute-se, votamos, decide-se, a tarde de hoje foi cosida sem darmos por isso, vital, generosa, eloquente, pícara, carinhosa, simples, genuína, zombeteira, bonacheirona e brilhante, feita dos retalhos, das cores, dos sons que somos, das palavras conhecidas de cada um, colhidas sem pressa, sem darmos por isso e que se re-inventaram na aura que fica aqui resumida e escrita e que, em rigor e em verdade, diz o Dicionário, dá pelo nome de amizade.
E por isso vou a correr escrever. Para que as ideias escorram depressa para o papel e dêem espaço às novas que se apressam a tomar forma. Escrever é forrar as paredes interiores de ideias arrumadas.
segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018
Renovismo em vez de turismo
Fazer turismo é uma coisa horrível. Literalemnte significa "dar voltas". E é isso que as pessoas fazem, hoje massivamente, em grupos, bandos, hordas, de nariz no ar, telemóvel em riste para gravar uns momentos que no momento não gozam para nunca mais o gozarem quando voltam para de onde vieram. Fica o registo gráfico mas perde-se a impressão, a emoção, a energia que eventualmente teria aptidão e capacidade para transformar a nossa alma...
Tenho cá uns amigos de longa data, de Barcelona, que desafiámos para virem passar um fim de semana comprido a Sintra. Com a intenção de partilhar com eles alguns lugares e proporcionar-lhes alguns momentos e vivências que associem, para sempre, a esta terra. Não é fácil pois não se trata de "impingir-lhes" nada nem de impor-lhes alguma coisa em concreto. Mas procuramos que voltem a casa com a alma reparada e pintada de fresco. Se não toda, uma parte, um cantinho. E sem sermos demasiadamente impositivos, escolhemos um roteiro que, passando pelos lugares sagrados (onde cruzamos os grupos de baratas tontas que se empurram para registar o que vêem) há sempre um comentário pessoal, fruto de uma vivência particular, que abre os olhos, chama a atenção, contextualiza, eleva, conduz o que se vê para esse lugar íntimo onde se vai contruindo o relato que transforma uma simples vivência numa energia renovadora da alma.
Saimos do nosso habitat para nos renovarmos. É esse o objetivo de visitar outros lugares. Foi e seria esse o objetivo do "turismo", se em vez de massivo e enlatado, fosse inteligente...compreendo que desde que se tornou em "receita" contabilística, é impossível fazer com que seja uma fonte de energia renovadora da nossa alma. Uma terapia à qual todos deveríamos ter acesso. Andar às voltas a olhar para cenários, a correr e em grupos que se atropelam, estonteia, cansa, irrita, esvazia, "abrutaliza". Praticar o renovismo é outra coisa. E nota-se no brilho dos olhares, na alegria dos sorrisos, na aura de energia que levam quando termina o fim de semana. O "renovismo" fez efeito. Vale a pena.
Ser romântico
Ser romântico não significa que se perca o mundo e a realidade de vista ou se chumbe em eficiência/eficácia ou não se dê com a saída pragmática aos problemas e se viva alheio à questão, por exemplo e entre outras que pesam sobre o ser humano moderno, o défice público, como acusa o século XX. Não. O romantismo pode e deve ser visto como o estado de espírito que nos abre a mente para encontrar, nessa realidade, a razão de ser de tudo, o insólito e inexplicável verosímil, a narrativa que irmana antíteses, explica contradições, cria percursos, estradas, caminhos infinitos, paisagens que se vão sucedendo e complentando como uma lógica que paira por cima do vôo rasante desses atributos humanos que hoje se enaltecem ou se colam à nossa pele, músculos e ossos e são causa da muita tristeza e penumbra da nossa vida. Pueril, ingénuo, inocente e pateta? Talvez, talvez...porém, sintam, por um instante, como a beleza que os olhos contemplam e a poesia que se vai escrevendo na alma quando passeamos nestes jardins de Monserrate são os ativos que fazem de nós, nesse preciso instante, o herói que podíamos ser, que nos sentimos capazes de ser ante os desafios que levamos na mochila! Ser romântico é isso: é levantar vôo apesar do lastro, é encontrar em nós e no tudo que nos rodeia aquela lógica profunda que contraria, supera, re-escreve a física da miséria e de todos esses atributos e ativos e competências que o realismo considerou como sendo a única forma de ser feliz e ter êxito nesta vida...desprestigiando a fábula que se esconde por trás, por cima, entre a realidade. Uma prova? Quem não se sente triste quando, acabado o passeio (ou outros momentos e lugares) e chegados ao carro, vê como o brilho vai esmorecendo e de herois nos transformamos nos resignados de sempre?
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018
A escrita como arte é saber expressar a criatividade através da escrita
No outro dia, entre amigos, falávamos sobre a escrita. Assunto apaixonante para alguns, como eu, que chegou, tarde, à conclusão que é este o meio através do qual me sinto mais á-vontade para expressar-me. A escrita, em si e por si só - o escrever e escrever bem - não é interessante e tem um valor relativo. Apenas o é como expressão da criatividade. O que importa não é o "escrevedor", é o criador, aquele que, através da escrita nos faz olhar a realidade através de um prisma oculto. Quando, de leitores-espectadores atentos, saltamos a barreira e nos colocamos no banco do protagonista ou do narrador. É nesse momento que nos agarramos a um livro e não o fechamos enquanto não o devoramos sofregamente. É o mérito de quem sabe, através da escrita, abrir uma gaveta desconhecida da nossa alma e onde encontramos partes de nós nunca vistas, uma espécie de tesouro que tínhamos escondido dentro de nós.
É fascinante, esse momento, mágico, inédito, único, como outros primeiros momentos de outra coisa qualquer. Somos levados pela mão por um caminho desconhecido e ele ou ela vai apontando com o dedo, explicando-as ou não, as novidades que vão aparecendo e nós, boquiabertos experimentamos o êxtase ante as maravilhas que desconhecíamos. E escolhemos as que mais nos agradam. Uns a forma, outros o conteúdo, outros aquilo que fica em suspenso e nos compete a nós completar. É uma aventura.
Com tudo isto, o que pretendo dizer é que a escrita, o que se escreve é tão mais importante em si e para nós quanto mais inédito for, mais criativo, mais inovador. É na criação que está a arte e na escrita, a arte está em conseguir que os leitores sintam uma dose importante de êxtase, surpresa, maravilhamento (não existe esta palavra, atenção). E este boquiabertamento (também não existe) consegue-se, agora já falando da escrita em si, através de muitos recursos técnicos que servem para poli-lo e abrilhantá-lo. Só. Mas atenção, são recursos necessários porque se não se apreciarem nem dominarem...talvez seja melhor procurar outro veículo para expressar a criatividade...porque a escrita, como arte é saber expressar a criatividade através da escrita.
domingo, 4 de fevereiro de 2018
Repousa em paz, amiga!
Caiu chuva vil e impiedosa no quintal e o vento, enfurecido, quebrou a rama da velha cameleira. Devia ser simples certificar a morte de uma mera braçada de árvore do jardim mas não é, não é desta, que durante anos foi a sua única e que, com as suas camélias, insistiu sempre em ser uma cameleira. A cameleira. Não foi uma ramada que hoje perdeu a vida, foi uma vida que acabou, uma história que chegou ao fim, um passado que deixou de ter futuro, a não ser na minha memória. E são tantas as memórias que desfilam, agora, enquanto a contemplo que não sei por onde começar, histórias soltas, diversas, todas elas parte da história minha e dos meus e desta casa, e ela sempre protagonista em todas elas, em torno dela, à frente dela, a servir de fundo, uma nota cor de rosa vibrante ou apenas uma mancha verde solitátia mas digna, resistente, fiel, aqui estou eu. Partilhou gargalhadas de crianças em correria, foi coito de velhas brincadeiras, foi a menina dos olhos do meu pai, lembrança dele na camélia que a minha mãe punha nas jarras, irmã mais velha de tudo quanto floria no jardim, exemplo de vida sem nunca ser mais do que aquilo que Deus lhe disse para ser, uma simples cameleira. E Deus recompensou esta sua vida de amor que a nós dedicou e lhe dedicamos com o dom de uma nova vida que começou a nascer à sombra daquilo que com o passar do tempo deixou de ser uma cameleira esplendorosa e vital e passou a ser uma braçada solitária, seca, torcida, rude, envelhecida. Hoje, finalmente, decidiu que era hora de passar o testemunho à cameleira que nasce a seus pés. É ela, é a mesma, mas será outra, a dos tempos que ainda estão para vir, daqueles que ela viu nascer e que, como todos os que aqui vivemos, também irão ter, a sua cameleira. Que sorte que temos. É uma benção ter-te sempre no jardim. Repousa em paz, amiga!
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018
Sê a mudança que queres ver no mundo
Gosto imenso daquelas construções com peças de dominó que, quando se empurra a primeira, as seguintes vão caindo e é possível ver a mudança em andamento. Também gosto de experimentar pegar numa peça, a meio do percurso e deixar o espaço que ocupava, livre. E ver como as peças que iam caindo umas atrás das outras, de repente, param.
Insistimos em pensar que as mudanças, no mundo dos humanos, não podem funcionar também desta maneira. É verdade que os humanos não são meras peças descerebradas de dominó e que, por isso, é impossível fazer uma mudança com este método mecânico sequencial. Consegir convencer todos os Humanos necessários à mudança a alinharem-se de forma sequencial e quase mecânica é impossível, diz-se. Visto a olho de pássaro e face à quantidade exorbitante de humanos que é necessária para fazer uma mudança sistémica, claro que é impossível.
Mas... e se limitarmos, a cada um, a tarefa de convencer o do lado? Quantos precisamos para assegurar o alinhamento estratégico? Menos, muito menos.
Apesar de o sabermos e de ser bastante indiscutível que é assim que funcionam, por exemplo, as ondas humanas nos estádios de futebol, o grito unânime nas manifestações, a difusão de mensagens na rede, ainda não se puseram em prática estratégias sérias para fazer mudanças sistémicas na sociedade desta maneira. Olho à minha volta e vejo grupos de pressão que tentam fazer passar a sua mensagem e chegar junto do poder usando as mesmas fórmulas de sempre - a de convencer o poder para que dite a mudança, de cima para baixo - ainda sabendo que o seu êxito é reduzido. Porque o poder é uma dessas peças que, colocada no início ou no meio da sequência, salta fora dela para impedir que a mudança se expanda porque a mudança, não lhe interessa. É por isso que penso que o poder deve ser sempre colocado no final da sequência quando já nada pode fazer para impedi-la.
É por isso que Ghandi formulou este seu famoso princípio: Sê a mudança que queres ver no mundo. Sem essa consciência e atitude individual...é cada vez mais difícil ordenar mudanças, impor mudanças, realizar mudanças, concretizar mudanças...E se pensarmos que o poder de mudar de um só pode ser fácilmente propagado ao do lado, e que este o pode contagiar ao seguinte, o nosso poder de mudança é uma peça fundamental da mudança universal.
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