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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Poemas inacabados


Tarde de inverno, recolhida
serena, pálida, esmorecida,
crepita baixinho o fogo, amarelado,
pouso as histórias do passado
versos soltos, esfarrapados
que se esvaem, sonolentos
na fumaça ondulante
silenciosa e baça.
Tarde de paz aparente
deitada na moleza
que pouco a pouco
se vai reduzindo
às brasas rubras,
e incandescentes
que fervilham na alma,
a mais crua realidade
que procura, insatisfeita,
incessante e inquieta,
a voz de um sentimento
que resiste, teimoso e inacessível
a ser palavra e melodia
de uma rima, um verso
uma canção, a poesia.
Entrada a noite,
o braseiro apagado,
na sala fria, só e desolada,
foi-se o encanto, a luz, o brilho
das memórias passadas,
reduzidos ao sabor triste e amargo
de um poema, para sempre
inacabado.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Damned, is so good to be alive!

Há dias em que fechamos a persiana da melancolia mais cedo para nos recolhermos entre as velharias que temos arrecadadas nas tulhas daquelas dispensas da nossa infância, lembram-se? Livros, fotografias, filmes a preto e branco, afetos cheios de carinho em que o colo redondo, quentinho e aconchegado dos pais era nosso e as pálpebras escorregavam sem dor nem preocupação para o mais profundo e levezinho dos sonos. Outros dias acordamos com aquela energia desafiante, destemida e de cabelos ao vento na ponta mais ocidental da Europa ,para lançarmos até ao horizonte a perder de vista o fogo que nasce poderoso e imparavel dentro de nós e que vai desenhando no nosso caderno mais íntimo e pessoal os projetos dos nossos multipes eus, heterónimos com quem convivemos desde que nos conhecemos e formam a nossa biblioteca vital e que nunca chegam a sair de nós, só algumas vezes, timidamente, quando o alcool atordoa a razão e torna tudo o que poderíamos ser, tão, tão real. Outros dias, ainda, vagueamos pelas paisagens monocromáticas, planas, desertas, frias e inóspitas, situadas na média de todos os eus que sou, sem nome próprio nem sinais nem imperfeições, uma pasta mole e sem forma que vai tomando a forma do que me rodeia, o negativo de todos os positivos com que me relaciono, com uns sinais vitais verdes, nos conformes de tudo e todos. Outros dias choro sem saber porquê ou encarinha-se-me o coração com histórias, filmes, poesias, frases, trechos, palavras, olhares, gestos… e rio-me com infantilidades e abraço afetos que me estendem os seus sorrisos, palavras que nos chegam ao cerne da nossa raiz, outras vezes fluo, sem grande personalidade e serena, até à foz do dia. E ele há dias quentes, tórridos, sem princípio nem fim, em que toda eu e o que quero e desejo é possível e vivo a eternidade criada apenas para o prazer do ser humano, a que condensa nela todas as cores, todos os espaços e se expande até ao final do Universo. O que fica de todas estas experiências, momentos e sensações é a certeza de que existo, vivo e me desdobro num sem fim acordeónico de eus e me vejo a mim mesma como um cometa incandescente que cruza as infinitas dimensões e realidades em que se justapõe a Vida, e que o que sou depende por onde passo e só sei que nunca sei, nunca, o que posso ser ou vir a ser e sentir, no minuto a seguir. E, atenção, nunca saio do mesmo sítio nem preciso de mais espaço e porém, nunca paro de viajar. E, todos os dias penso, damned, is so good to be alive!

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Memórias de um bife frito em manteiga

Hoje, ao jantar, de forma fortuita e totalmente inesperada, fiz uma viagem de anos ao meu passado e aterrei num almoço da minha infância, um dos muitos sábados em que a família se deslocava a casa da minha avó para almoçarmos juntos, a praxe, dos sábados, claro. Não foi preciso fechar os olhos, nem acomodar-me numa máquina do tempo que nem sequer existe, ainda, nem fazer um grande esforço de procura pelos arquivos da memória visual ou escrita para me conseguir situar, sentada à mesa da casa de jantar, que naquela época me parecia gigante, luminosa, aberta sobre uma varanda exposta ao sol e de onde vinha um cheiro a madresilva, uma brisa de pétalas de frutas doces, e reviver, com uma nitidez de lente limpa, imaculada, todo o ambiente desses momentos marco da minha infância. Bastou-me para isso olhar para a manteigueira que, excecionalmente se encontrava mesmo ao lado do fogão e pensar, porque não fritar o bife - um naco de lombo que iria fazer as minhas delícias num jantar solitário e que me peparava para deitar na frigideira, assim, sem nada, sem gordura nem mais tempero que o sal e a pimenta, o casal mais vulgar e visto do mundo - na dita manteiga, sem deixá-la queimar mas o suficientemente quente para dourar a carne e para que esta se impregnasse daquele sabor e libertasse aquele odor que recriaram na minha mente e até mesmo à minha volta, como se de um holograma se tratasse, como se estivesse presente, esses almoços de sábado em que a minha avó fazia o mimo ao meu pai de lhe servir o bife frito em manteiga da sua própria infância. O sabor que a manteiga proporciona à carne - e que não é o mesmo que deixa na torrada quente nem no pão fresco nem no linguado meunière ou no gratin dauphinois, por hipótese - e o perfume que se espalha pela boca, invadiram o cérebro, envolveram e seduziram a minha memória e arrancaram-lhe essas vivências tão típicas, tão características, tão rotineiras, tão reais da minha infância que até lhe ouvi as vozes, as conversas, as gargalhadas, os sons, os cheiros, os brilhos, as caras, os sorrisos, as histórias, a decoração, a luz, a temperatura, as cores, os afetos, as ligações, os planos, os sonhos, as expetativas, as promessas, as ilusões, os segredos, as fantasias, as embirrações, as lágrimas, os ódios, os temores, o carinho, a doçura, a condescendência, o ser que é ser-se criança, esse espaço-tempo único, irrepetível e inalienavel, tão só nosso, tão o que fomos e por isso mesmo, por estar lá escondido tão fundo e tão dentro de nós, o que somos, a final de contas, ainda hoje apesar de todos os anos volvidos e revolvidos e que o sabor e o odor da manteiga dourada impregnada na carne que se infiltraram na frincha esquecida que ficou destes tempos passados, escorreram para o papel, para este preto no branco, este fragmento da história da minha vida e de tantas e tantas vidas de outras pessoas que também tiveram a sorte de que se lhes servisse um bife dourado de uma manteiga que, por obra e arte de alguém que nunca aparecia, jamais se queimava nem passava do ponto e fez com que o almoço de sábado na casa de jantar da minha avó se erguesse num padrão inesquecível desta minha viagem pela vida. Sei que as memórias não voltam uma segunda vez, mas também sei que quando se plantam à nossa frente são capazes de transformar o que havia de ser um jantar solitário do final de um dia cansado de incógnitas e polvilhado de parcas alegrias, no mais inesperado e reconfortante dos presentes que me podia ter sido dado. Pensar é uma companhia que nunca falha. A manteiga e o bife são apenas, saborosas vírgulas.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Mais do que a própria vida

Foi com a fúria e o ímpeto deste mar
de raça e estirpe guerreira
que um dia te amei,
destemida e ousada,
e mergulhei bem fundo, sem pensar
na gigantesca onda do teu abraço,
e me perdi a mim, ao tempo e ao espaço
longos e eternos minutos sem respirar
entregue a esse beijo com que me sugaste
a força, a vontade, o coração, a alma,
a juventude, o sentido da vida que não tive,
amor primeiro,
amor inteiro,
mar que foste e és
e que tanto amei
e amo,
mais do que a própria vida.

Praia Grande, 17 de fevereiro de 2024

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

O eu que me sonho

Na rampa de lançamento para mais uma noite de viagens interiores que nem eu sei como se organizam e se desenvolvem, por onde andam e para onde vão. É toda uma vida de surpresas, fantasias, mistérios, aventuras, que deambula por autoestradas, estradas e caminhos neuronais e que, vistos à distância e em modo zoom out, configuram mapas, cenários, roteiros, geografias do eu que repousa sossegadamente, sem pés nem cabeça, nem eira nem beira nem rei nem roque! E não obstante esse emaranhado existencial absurdo em que me transformo cada noite sem querer e sem que ninguém me pergunte se quero ou desejo ser esse ser sonhado, sou sempre eu, desconstruída e reconstruída com as peças de que sou feita ainda que dispostas de outra maneira e vestida eu com as roupas que habitam a minha memória, tão guardadas nesse quarto secreto que se abre, apenas e só quando as pálpebras se me fecham e deixo para trás a realidade de mim…Nunca sei onde me levam os agentes de viagens que são esse batalhão de neurónios que me fazem e desfazem e voltam a fazer como se fosse feita de núvens esvoaçantes e líquidas…que resistência posso oferecer quando me empurram por um desfiladeiro ou me enviam numa nave para o espaço sideral ou me lançam nos braços de um alguém que me faria corar de vergonha? Eu bem tento nos momentos anteriores a estas excursões noturnas pelo meu mapa mundo, influenciar a escolha dos caminhos por onde me levam, das histórias onde adoraria ser protagonista, dos amores que me fariam feliz, da pessoa que toma as decisões que jamais tomarei, mas nunca consigo…
Desta feita peguei nas paisagens frias, duras, escorridas e desoladas dos interiores humanos que a surpreendente escritora polaca Olga Tokarczuk traça sem piedade, para ver se me convenço a deixar-me ver o mundo com os seus olhos clínicos, ao menos por uma noite…! Já só vejo uma frincha de luz que se esgueira desfocada e cada vez mais distante de mim…Uma boa noite para todos!
May be an image of text que diu 'PREMIO OLGA TOKARCZUK NOBEL DE LITERATURA CASA DE DIA, CASA DE NOITE'
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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

As cinco irmãs

 As cinco irmãs, de tronco austero e despidas de ornamentos e fragilizadas de cor e, contudo, tão delicadamente belas e vistosas nas ramas finas e delgadas, braços abertos contra as cinzas do céu, numa manhã de inverno fria e brumosa, tímida, sem vontade de começar o dia, silenciosa e quieta não vá o vento acordar e desfazer o encanto que o olhar captou e a alma inspirou até bem ao fundo de si.

May be an image of arbre
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Gi Ribeiro Dos Santos, Maria Ataide i 10 persones més

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