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quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Memórias de um bife frito em manteiga

Hoje, ao jantar, de forma fortuita e totalmente inesperada, fiz uma viagem de anos ao meu passado e aterrei num almoço da minha infância, um dos muitos sábados em que a família se deslocava a casa da minha avó para almoçarmos juntos, a praxe, dos sábados, claro. Não foi preciso fechar os olhos, nem acomodar-me numa máquina do tempo que nem sequer existe, ainda, nem fazer um grande esforço de procura pelos arquivos da memória visual ou escrita para me conseguir situar, sentada à mesa da casa de jantar, que naquela época me parecia gigante, luminosa, aberta sobre uma varanda exposta ao sol e de onde vinha um cheiro a madresilva, uma brisa de pétalas de frutas doces, e reviver, com uma nitidez de lente limpa, imaculada, todo o ambiente desses momentos marco da minha infância. Bastou-me para isso olhar para a manteigueira que, excecionalmente se encontrava mesmo ao lado do fogão e pensar, porque não fritar o bife - um naco de lombo que iria fazer as minhas delícias num jantar solitário e que me peparava para deitar na frigideira, assim, sem nada, sem gordura nem mais tempero que o sal e a pimenta, o casal mais vulgar e visto do mundo - na dita manteiga, sem deixá-la queimar mas o suficientemente quente para dourar a carne e para que esta se impregnasse daquele sabor e libertasse aquele odor que recriaram na minha mente e até mesmo à minha volta, como se de um holograma se tratasse, como se estivesse presente, esses almoços de sábado em que a minha avó fazia o mimo ao meu pai de lhe servir o bife frito em manteiga da sua própria infância. O sabor que a manteiga proporciona à carne - e que não é o mesmo que deixa na torrada quente nem no pão fresco nem no linguado meunière ou no gratin dauphinois, por hipótese - e o perfume que se espalha pela boca, invadiram o cérebro, envolveram e seduziram a minha memória e arrancaram-lhe essas vivências tão típicas, tão características, tão rotineiras, tão reais da minha infância que até lhe ouvi as vozes, as conversas, as gargalhadas, os sons, os cheiros, os brilhos, as caras, os sorrisos, as histórias, a decoração, a luz, a temperatura, as cores, os afetos, as ligações, os planos, os sonhos, as expetativas, as promessas, as ilusões, os segredos, as fantasias, as embirrações, as lágrimas, os ódios, os temores, o carinho, a doçura, a condescendência, o ser que é ser-se criança, esse espaço-tempo único, irrepetível e inalienavel, tão só nosso, tão o que fomos e por isso mesmo, por estar lá escondido tão fundo e tão dentro de nós, o que somos, a final de contas, ainda hoje apesar de todos os anos volvidos e revolvidos e que o sabor e o odor da manteiga dourada impregnada na carne que se infiltraram na frincha esquecida que ficou destes tempos passados, escorreram para o papel, para este preto no branco, este fragmento da história da minha vida e de tantas e tantas vidas de outras pessoas que também tiveram a sorte de que se lhes servisse um bife dourado de uma manteiga que, por obra e arte de alguém que nunca aparecia, jamais se queimava nem passava do ponto e fez com que o almoço de sábado na casa de jantar da minha avó se erguesse num padrão inesquecível desta minha viagem pela vida. Sei que as memórias não voltam uma segunda vez, mas também sei que quando se plantam à nossa frente são capazes de transformar o que havia de ser um jantar solitário do final de um dia cansado de incógnitas e polvilhado de parcas alegrias, no mais inesperado e reconfortante dos presentes que me podia ter sido dado. Pensar é uma companhia que nunca falha. A manteiga e o bife são apenas, saborosas vírgulas.

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