Há dias em que fechamos a persiana da melancolia mais cedo para nos recolhermos entre as velharias que temos arrecadadas nas tulhas daquelas dispensas da nossa infância, lembram-se? Livros, fotografias, filmes a preto e branco, afetos cheios de carinho em que o colo redondo, quentinho e aconchegado dos pais era nosso e as pálpebras escorregavam sem dor nem preocupação para o mais profundo e levezinho dos sonos. Outros dias acordamos com aquela energia desafiante, destemida e de cabelos ao vento na ponta mais ocidental da Europa ,para lançarmos até ao horizonte a perder de vista o fogo que nasce poderoso e imparavel dentro de nós e que vai desenhando no nosso caderno mais íntimo e pessoal os projetos dos nossos multipes eus, heterónimos com quem convivemos desde que nos conhecemos e formam a nossa biblioteca vital e que nunca chegam a sair de nós, só algumas vezes, timidamente, quando o alcool atordoa a razão e torna tudo o que poderíamos ser, tão, tão real. Outros dias, ainda, vagueamos pelas paisagens monocromáticas, planas, desertas, frias e inóspitas, situadas na média de todos os eus que sou, sem nome próprio nem sinais nem imperfeições, uma pasta mole e sem forma que vai tomando a forma do que me rodeia, o negativo de todos os positivos com que me relaciono, com uns sinais vitais verdes, nos conformes de tudo e todos. Outros dias choro sem saber porquê ou encarinha-se-me o coração com histórias, filmes, poesias, frases, trechos, palavras, olhares, gestos… e rio-me com infantilidades e abraço afetos que me estendem os seus sorrisos, palavras que nos chegam ao cerne da nossa raiz, outras vezes fluo, sem grande personalidade e serena, até à foz do dia. E ele há dias quentes, tórridos, sem princípio nem fim, em que toda eu e o que quero e desejo é possível e vivo a eternidade criada apenas para o prazer do ser humano, a que condensa nela todas as cores, todos os espaços e se expande até ao final do Universo. O que fica de todas estas experiências, momentos e sensações é a certeza de que existo, vivo e me desdobro num sem fim acordeónico de eus e me vejo a mim mesma como um cometa incandescente que cruza as infinitas dimensões e realidades em que se justapõe a Vida, e que o que sou depende por onde passo e só sei que nunca sei, nunca, o que posso ser ou vir a ser e sentir, no minuto a seguir. E, atenção, nunca saio do mesmo sítio nem preciso de mais espaço e porém, nunca paro de viajar. E, todos os dias penso, damned, is so good to be alive!
 
 
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