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domingo, 1 de maio de 2016

O azar de nascer folha em branco


Há páginas cuja sina é ficarem para sempre, em branco. Há anos que escrevo e nunca reduzi a escrito, numa folha de papel em branco, relato algum da minha vida e cruzo-me, cada dia, com mil e uma ideias que não se deixam acorrentar nas palavras que as representam e as reivindicam como se o que sinto ou penso pudesse alguma vez pertencer-lhes. Reconheço que alguma vez me senti tentada a fazê-lo, tenho milhares de cadernos novos, lindos, bem apessoados, chiques, uns de pano, outros de couro, outros vestidos de sedas deslumbrantes e com ar de escritor mas nem assim me deixei seduzir, porque à hora da verdade, as minhas ideias não se deixam apanhar, são vadias, diletantes, caprichosas e rebentam como as bolas de sabão assim que sentem que alguém as quer arrumar para sempre, bem dobradas, na gaveta de um papel em branco. Sorrio com condescendência e tento apaziguar a indignação dessas solicitas folhas nuas que esperam o dia de glória de se verem vestidas de palavras doutas e caras, redondas e engalanadas para puderem luzir, ante o mundo, por fim, a sua vaidade.
Sei que essas emproadas folhas em branco, nas minhas costas, me atribuem a responsabilidade de não ter mão no que sinto ou penso e me acham uma inútil incapaz, oiço-lhes o maldizer quando me afasto da minha mesa de trabalho mas nem assim lhes quero mal. A verdade é que as enganei quando as seduzi com a profusão de ideias originais e belas que se iam escrever por si próprias nas suas planícies a perder de vista, sem pausa, com fervor, alma e paixão, em episódios, contos, histórias e quem sabe se não poesia e até hoje...nem uma linha.
Não que não tenha tentado, já, sobretudo à hora do amanhecer, bem cedinho, quando as ideias ainda estão adormecidas e as disponho, certinhas, numa primeira frase de palavras bem pensadas mas nem assim, desta forma sorrateira, as consigo disciplinar. Nasci sem dono, sou vadia e livre e o que penso e sinto não tem forma nem maneira de encontrar palavras com as quais possam selar o compromisso, de se verem escritas, para toda a eternidade, numa simples folha em branco.

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