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segunda-feira, 25 de abril de 2016

Fazer anos no dia de uma Revolução em andamento


25 de abril de 1974. 7h30 da manhã. Sózinha com a minha mãe em Lisboa. Meu pai e irmãos em Luanda. É hora de ir para a Escola, o autocarro passa dentro de 5 minutos na Rodrigo da Fonseca. Vou-me despedir da minha mãe ao quarto, que dava para a rua. "Está tudo tão silencioso", disse e era verdade, não se ouvia o bulício de uma manhã como todas as outras. Eis senão quando toca o telefone, a minha mãe levanta-se, atende, era a minha avó Mimi a dizer que "parece que há qualquer coisa, a Nica telefonou a dizer que o Rui está fugido...não deixe a Carminho ir à Escola, Micéu." Ficámos assustadas e foi quando a minha mãe subiu as persianas para ver "o que se passava". Assim que abriu à janela foi mandada para dentro por dois soldados que guardavam o prédio da frente. A rua estava deserta e fechámos a janela, óbviamente, e interrogámo-nos em silêncio. Militares? Com espingardas? E começaram a chover telefonemas dos amigos: para enchermos a banheira de água, para saberem se tinhamos comida, velas...a emoção era grande. "Não tenho cigarros", disse a minha mãe, "tenho que sair a comprar" E assim fez. Arranjou-se, pos uma gabardine e saiu. Naquele seu jeito assertivo, convenceu os militares a deixarem-na ir comprar cigarros e foi escoltada por um deles até à Rua Castilho, à "Morte Lenta", a única mercearia aberta no bairro, que estava tomado pelos militares. Ao longo do dia, agarradas à telefonia e ao telefone, lá fomos sabendo aquilo a que todos os Portugueses se viram confrontados naquela manhã fria de 25 de abril: que um Golpe Militar tinha posto um ponto final a um Regime que, para mim, vinha da noite dos tempos e que, poucas semanas antes, parecia de pedra e cal, para durar para sempre. Tinha 13 anos. Era véspera dos meus anos. 25 de abril de 1974. No dia a seguir fiz 14. Quem é que pode esquecer o dia em que, à meia noite de uma Revolução em andamento, fez 14 anos?

sábado, 23 de abril de 2016

Para os meus Amigos Livros, sempre, a rosa mais bela do Universo!



Hoje é o Dia Mundial do Livro. Que na Catalunha, ao coincidir com o Dia de S. Jordi (S. Jorge) dá lugar à troca, pelas ruas das aldeias, vilas e cidades, de um livro por uma rosa encarnada...beautiful! Eu, por cá, faço tenções de ir comprar uma rosa (que o roseiral do Condomínio Pinto ainda não está em flor) para homenagear estes meus velhos livros, velhotes, e outros tantos que tanto venero, pelo que têm contribuído, ao longo dos anos e desta sua silenciosa e constante presença, generosamente, para alimentar o "motor" da minha vida, com a fantasia, o sonho e a esperança, que me dão a militância para ser quem sou e onde estou. Obrigada, Amigos, tentarei encontrar, para vocês, a Rosa mais bela do Universo!

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Sintra amada




Escrevo, devagar, devagarinho,
as palavras, uma a uma,
com paciência e carinho
numa folha de papel
em branco.
Paro, levanto o olhar
e deparo-me contigo
do outro lado do vidro
num pranto, a murmurar.
E a alma fustigada
pelas gotas na vidraça
estremece na escrita
em busca de uma palavra
que descreva tal desdita.
Porém, Sintra amada
soubesses tu que o teu pranto
essa tua tristeza
de lagrimas derramada
é para mim a beleza
com que te bordo
apaixonada,
em cada palavra,
na folha de papel em branco.

Escrita

Se a escrita é bordar a alma, com amor maternal no papel, a poesia é para quem o faz com a paixão de um amante. É isto.

Ai, Sintra, Sintra...



Os anjos também têm "after hours" e há quem os sinta a vagabundearem pelo Universo, a estas horas solitárias com cara de quem teve uma noite gloriosa. Parei o carro e tirei à pressa o telemovel do bolso para tentar apanhar um que se me cruzou no caminho, aqui na Curva do Duche e captei-o nestes dois momentos. Se olharem bem, dá para ver esta criatura esculpida de luz e brisa, suaves e sossegadas, a avançar com um sussurro de asas de fundo, deixando atrás de si uma melodia transparente e cristalina que vai ficando escrita nestas paisagens de palácios e jardins de Sintra e que depois é vendida aos turistas, horas mais tarde, quando se passeiam por aqui, sob as narrativas mais diversas mas todas elas sem classe e a preços de saldo, infelizmente. Se o pessoal responsavel pelo chamado Centro histórico se passeasse por aqui a estas horas e visse os anjos a regressarem ao Céu depois de uma noite de trabalho na fabrica do elixir que cura as doenças da Alma...talvez percebessem, finalmente, o atraso de vida que é continuar a vender as lendas e a poesia das mantas, chinelos, loiça, pins, hamburguers, postais e t shirts do galinho de Barcelos, ainda que expliquem que esta narrativa remonta ao tempo dos mouros e paga royalties aos reis cavaleiros...negócios de valor não são para pálpebras brutamontes, pesadas demais para estarem abertas às horas a que os anjos regressam ao paraíso.
Ai Sintra, Sintra,
que tristeza levares no coração,
este templo sagrado
cujo tesouro mais bem guardado
é tão generosamente em vão..

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Na minha casa velha mas de sonho

Pela janela entrou um raio de luz filtrado pelos vidros antigos que se dispersou, de forma subtil, pela sala como se pretendesse brincar às escondidas com a penumbra. Não terá dado por mim, pois abriu os braços e escolheu um verde esmeralda para pintar na parede ao lado do sofá, o brilho de um dos penduricalhos de cristal do toucheiro que está em cima da cómoda. Sentou-se a olhar e, devagarinho, tocou a imagem com um dedo, fino, e esta começou a fundir-se num verde mais profundo até se transformar num azulado que passou pela cor do petróleo e acabou num vermelho da cor do inferno...foi nessa altura que deixei literalmente de respirar e quis ser tão de pedra como o cinzeiro de mármore que transporto sempre comigo desde o dia em que fumar passou a ser socialmente reprovável e os cinzeiros, presentes em todas as mesinhas e mesas e cómodas, deixaram de ser usados e vistos como cinzeiros. O raio de luz continuou, concentrado e absorto, a testar na imagem projetada na parede, as cores do arco iris, primeiro com delicadeza e precisão, da mais luminosa à mais profunda, como se estivesse a exercitar escalas, do dó menor ao dó maior, para a seguir começar a alternar entre umas e outras, cada vez mais rápido, como se estivesse a dirigir uma orquestra de cores. Estava a tocar algo, uma música, pensei para mim, pois as cores com que ía tingindo a parede, sucediam-se com uma determinada cadência, à qual ia acrescentando uma intensidade diferente, tonalidades mais fortes ou mais doces, como...espera, pensei, com um franzir de sobrolho, espera lá...é piano, está a tocar piano, anil agreste, anil doce e agora o encarnado, forte, fortíssimo, jesus, nunca vi tal rubro em dias da minha vida, que raio...e sem querer, sem querer mesmo, asseguro, vi-me, senti-me, apanhei-me a trautear, para dentro, os sons correspondentes à sequência de cores que o raio, agora definitivamente na pele de um desgrenhado, agitado e entregado Chefe de Orquestra, ia projetando no cenário. A sala encheu-se de um festival de luz, cor e música e, às tantas, perdi o pudor e também o temor e desatei a entoar com ênfase, os sucessivos arco-iris de uma música que me era familiar, tão familiar, aquela que era, sem sombra de dúvida, a que o raio de luz ia projetando, com vibrante esplendor, já não apenas na parede mas na sala toda, transformando-a num monumental espetáculo de luz, cor e som, que levou a minha alma ao rubro até sentir-me e ver-me dissolvida no espaço da sala, desmaterializada nessas bandas largas de escalas de um Universo que... sonhei, nesse dia, em que adormeci a olhar, inadvertidamente, para um raio de luz que se esgueirou pela malha tosca dos vidros antigos da janela da Sala de Estudo onde me tinha vindo sentar em busca de folhear num conto qualquer de um livro qualquer arrumado na estante, um sonho que acabei por trautear sem sequer chegar a abrir o livro. Coisas que acontecem, nesta minha casa velha, mas de sonho.

domingo, 3 de abril de 2016

Aqueles jacarandás

Aqueles jacarandás
que me cruzam
cada dia,
ao virar das esquinas,
são nuvens delicadas
de memórias passadas
vestidas de lilás.

Frascos de cristal e prata
doirados de perfumes
secos, gastos e refinados
sobre mármore rosa polido
pentes de osso e marfim
em escovas de javali
sob o olhar doce e perdido
da Virgem de talha dourada
relíquia venerada,
de joias adornada.

Sopra a brisa
pela cambraia fina
de renda trabalhada
e agita o lilás,
cai a pétala delicada
sobre as folhas amareladas
de um livro de orações,
colares, pedras, brasões,
sedas doces, perfumadas
flores pálidas espalhadas
pelas imagens espelhadas
na memória
vestida de lilás
em cada esquina
de cada dia
naqueles jacarandás.

Não me procures em ti

Não me procures em ti
Porque nem eu sei quem sou
De tantos que sou,
Tantos quanto
me fazem sentido
Quando me procuro
E penso que me encontrei.

Não. Não me encontrarás
Procurando-me em ti ou em mim
Ou a mim, que me procuro
Há tempos e anos sem fim
Em vão pensando
Que sou, alguém
Que não sou.

Sou peregrina de mim
Caminho, errante, declinando-me
Sem rumo, à procura de um ser
Que possa ser em mim
E, assim sendo, ser também em ti

O que procuras de mim.

O que sou

Escrevo o que sou
e sou como escrevo
e é por isso que as palavras
desfilam o que sinto
e se articulam como penso
e te fazem sonhar.
Só tu sentes o que de mim 
ondula no ritmo
das rimas desfeitas, 
só tu pasmas 
com a forma 
como as cores
da minha alma
vão entardecendo 
à medida que
o poema se vai
desenhando
nas palavras
que deslizam
subtis
de um pensamento
e caem em cascata
na folha de papel 
em branco.
Só eu sei
encadear-te
no que sou
quando escrevo
e no que escrevo 
por amor.

O meu Universo

Sou a fantasia
que me devolves
uma a uma,
nas palavras rimadas
de mim,
acrescentadas
de ti,
ao meu Universo
sonhado
de poesia.

sábado, 2 de abril de 2016

Matisse, a luz, a cor e as clívias da minha sala

No outro dia, à hora em que o sol vira a sul e me entra pela janela da sala, a minha jarra de clivias transformou-se, subitamente, numa natureza morta de uma qualquer pintura de Matisse e iluminou-me a sala com a alegria exuberante das cores que forram os seus quadros. Tudo aconteceu numa fração de segundo, apenas tive tempo de me imobilizar e reter a respiração para não perturbar esse estranho fenómeno com que me deparei. As clívias, de repente, pareciam ter adquirido uma consciência, algo que as fez transcenderem-se a si próprias e aspiraram, absorveram e processaram toda a luz do Universo e a de tudo o que as rodeava, mergulhámos na escuridão e, como por milagre, como se tivessem sido tocadas por uma varinha mágica, todas as suas mais minúsculas células explodiram em uníssono numa dessas labaredas de cor que o mestre pintor imortalizou nos seus quadros. No preciso instante em que isso aconteceu eu vi a alma de Matisse a capturar a cor e a transmiti-la à tela graças a essa estranha e surpreendente transformação - que presenciei mais calada que um rato - das clívias em reator nuclear que absorveu a luz e lhes permitiu tingirem-se na cor mais esplendorosa e vibrante que a minha alma sentiu e quiz ver. Foi um momento único e maravilhoso este que vivi, no outro dia, ao entrar involuntariamente na sala à hora do trânsito solar de este a sul defronte da minha janela. Passam-se coisas extraordinárias nas nossas costas, não passam?

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