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segunda-feira, 4 de abril de 2016

Na minha casa velha mas de sonho

Pela janela entrou um raio de luz filtrado pelos vidros antigos que se dispersou, de forma subtil, pela sala como se pretendesse brincar às escondidas com a penumbra. Não terá dado por mim, pois abriu os braços e escolheu um verde esmeralda para pintar na parede ao lado do sofá, o brilho de um dos penduricalhos de cristal do toucheiro que está em cima da cómoda. Sentou-se a olhar e, devagarinho, tocou a imagem com um dedo, fino, e esta começou a fundir-se num verde mais profundo até se transformar num azulado que passou pela cor do petróleo e acabou num vermelho da cor do inferno...foi nessa altura que deixei literalmente de respirar e quis ser tão de pedra como o cinzeiro de mármore que transporto sempre comigo desde o dia em que fumar passou a ser socialmente reprovável e os cinzeiros, presentes em todas as mesinhas e mesas e cómodas, deixaram de ser usados e vistos como cinzeiros. O raio de luz continuou, concentrado e absorto, a testar na imagem projetada na parede, as cores do arco iris, primeiro com delicadeza e precisão, da mais luminosa à mais profunda, como se estivesse a exercitar escalas, do dó menor ao dó maior, para a seguir começar a alternar entre umas e outras, cada vez mais rápido, como se estivesse a dirigir uma orquestra de cores. Estava a tocar algo, uma música, pensei para mim, pois as cores com que ía tingindo a parede, sucediam-se com uma determinada cadência, à qual ia acrescentando uma intensidade diferente, tonalidades mais fortes ou mais doces, como...espera, pensei, com um franzir de sobrolho, espera lá...é piano, está a tocar piano, anil agreste, anil doce e agora o encarnado, forte, fortíssimo, jesus, nunca vi tal rubro em dias da minha vida, que raio...e sem querer, sem querer mesmo, asseguro, vi-me, senti-me, apanhei-me a trautear, para dentro, os sons correspondentes à sequência de cores que o raio, agora definitivamente na pele de um desgrenhado, agitado e entregado Chefe de Orquestra, ia projetando no cenário. A sala encheu-se de um festival de luz, cor e música e, às tantas, perdi o pudor e também o temor e desatei a entoar com ênfase, os sucessivos arco-iris de uma música que me era familiar, tão familiar, aquela que era, sem sombra de dúvida, a que o raio de luz ia projetando, com vibrante esplendor, já não apenas na parede mas na sala toda, transformando-a num monumental espetáculo de luz, cor e som, que levou a minha alma ao rubro até sentir-me e ver-me dissolvida no espaço da sala, desmaterializada nessas bandas largas de escalas de um Universo que... sonhei, nesse dia, em que adormeci a olhar, inadvertidamente, para um raio de luz que se esgueirou pela malha tosca dos vidros antigos da janela da Sala de Estudo onde me tinha vindo sentar em busca de folhear num conto qualquer de um livro qualquer arrumado na estante, um sonho que acabei por trautear sem sequer chegar a abrir o livro. Coisas que acontecem, nesta minha casa velha, mas de sonho.

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