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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Só a morte me pode "lixar"!

Setembro de 1994. Telefono ao meu pai, de Bruxelas, como cada dia. Nesse dia, ao subir da Vila para casa, em Sintra, a pé, disse-me, sentira uma dor. Com o historial que tinha, era um enorme balde de água fria. Não obstante, como acontecera no passado, fiquei à espera do comentário displiscente em relação a mais essa "dor", de tantas outras que já tivera. O silêncio, porém prolongou-se e foi finalmente cortado por uma sentença que, vindo dele, nãotinha apelo nem agravo: "Estou lixado!" O chão naquele dia fugiu-me debaixo dos pés. Os meus olhos fixaram pela primeira vez na minha vida, uma escuridão desconhecida, fria, desolada, solitaria, um medo terrível, terrorífico, de um final, de um caminho sem retorno possível, o confronto impiedoso com o "não há nada a fazer". Embora a vida continuasse igual por mais uns tempos, o meu pai morreu a 6 de novembro. Foi há 21 anos. 
A expressão "estou lixado" adquiriu para mim um significado transcendente. Nunca o meu pai a usara antes. Só quando a morte me bater à porta é que eu vou ter razão para dizer "estou lixada". Porque senão, não vejo o que possa lixar-me a vida que escolhi e que vivo com a consciência tranquila, de alma e coração entregues ao que faço. Que Deus me dê muitos e muitos anos antes de ter que admitir: "Estou lixada".

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