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sábado, 12 de janeiro de 2013


Hoje, ao fazer as camas de lavado, em Sintra, num dos cobertores antigos, que eram das camas dos meus irmãos e agora habitam nas dos meus filhos, detetei aquela irredutível mancha de tinta azul permanente, filha da desobediência à regra de que não se pintava na cama com canetas, uma de muitas e vieram-me à cabeça algumas, a mais ingénua de todas a que me levou a mim e ao meu irmão João a colocar bem no centro do quarto das brincadeiras, a camilha que habitava sempre num canto, onde jantávamos, às vezes, de pequenos, para esconder um miserável buraco enegrecido no tapete, causado pelo cruzamento sem tino de elementos de uma caixa de experiências químicas, um líquido negro e malcheiroso que se nos transbordou - como era previsível - de um magrinho tubo de ensaio e cavalgou animadamente pelo tapete fora até comê-lo, a aflição, "e agora? Limpa depressa, ai a mãe! E agora?" O agora foi resolvido com a colocação da camilha em cima do buraco, imaginando que a minha mãe de nada se aperceberia, que ingenuidade, a mesa ali, não fazia sentido algum para um adulto, e assim foi e foi assim que ao entrar no quarto, a minha mãe, como não podia deixar de ser, pegou na mesa para pô-la no lugar e ao fazê-lo deu de caras com a brincadeira que deixara de o ser para passar a ser uma simples asneira num tapete inutilizado, gravado na galeria dos feitos sem glória da nossa infância. Viro a página, ele há tantas de páginas destas na memória e nas manchas dos cobertores, tapetes, objetos e histórias que há gerações que convivem nesta casa, que não há tempo suficiente para escrevê-las a todas.

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