Hoje, ao fazer as
camas de lavado, em Sintra, num dos cobertores antigos, que eram das camas dos
meus irmãos e agora habitam nas dos meus filhos, detetei aquela irredutível
mancha de tinta azul permanente, filha da desobediência à regra de que não se
pintava na cama com canetas, uma de muitas e vieram-me à cabeça algumas, a mais
ingénua de todas a que me levou a mim e ao meu irmão João a colocar bem no
centro do quarto das brincadeiras, a camilha que habitava sempre num canto,
onde jantávamos, às vezes, de pequenos, para esconder um miserável buraco
enegrecido no tapete, causado pelo cruzamento sem tino de elementos de uma
caixa de experiências químicas, um líquido negro e malcheiroso que se nos
transbordou - como era previsível - de um magrinho tubo de ensaio e cavalgou
animadamente pelo tapete fora até comê-lo, a aflição, "e agora? Limpa
depressa, ai a mãe! E agora?" O agora foi resolvido com a colocação da
camilha em cima do buraco, imaginando que a minha mãe de nada se aperceberia,
que ingenuidade, a mesa ali, não fazia sentido algum para um adulto, e assim
foi e foi assim que ao entrar no quarto, a minha mãe, como não podia deixar de
ser, pegou na mesa para pô-la no lugar e ao fazê-lo deu de caras com a
brincadeira que deixara de o ser para passar a ser uma simples asneira num
tapete inutilizado, gravado na galeria dos feitos sem glória da nossa infância.
Viro a página, ele há tantas de páginas destas na memória e nas manchas dos
cobertores, tapetes, objetos e histórias que há gerações que convivem nesta
casa, que não há tempo suficiente para escrevê-las a todas.
 
 
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