Hoje sei como a
vida são esses postais ilustrados que vamos colocando com amor na estante da
nossa memória. Envelhecer é isso mesmo: possuir uma já considerável coleção de
momentos, coisas, vozes, cheiros e imagens que entretêm o nosso olhar sobre o
passado e cosem uns aos outros os retalhos da nossa memória. E é curioso.
Porque são esses passeios tranquilos pelas paisagens de outrora que adoçam o
meu olhar sobre o presente e no entanto é a doçura com que hoje percorro esses
momentos que fazem deles as referências do meu presente. Parece difícil de
entender mas no fundo não o é tanto assim. Tenho nas mãos uma fotografia minha
dos tempos da quarta classe junto da Maria João Castelo Branco, ambas vestidas
com o então tão desgradável e irritante peitilho cuja gola redonda de piqué
branco espreita, no pescoço, pelo decote da camisola escura e grossa de lã
virgem. Alguém usava esses peitilhos? Quem os experimentou sabe tão bem quanto
eu o incómodo que era usá-los, sobretudo porque, ao não terem mangas, punham em
permanente contacto com a pele as mangas dessas camisolas de lã feitas em casa
que picavam até aos nervos. Hoje, a João e eu recordamos esse martírio típico
da austeridade a que os nossos pais nos habituaram, essa certeza inabalável e
incorruptivel de um estilo de vida sobrio e aproveitado, que outro não havia
nem era dado que houvesse e isso hoje comove-nos e faz-nos sentir umas
previlegiadas por termos tido a ocasião de ser guiadas por valores e princípios
que vigoravam à margem das modas, dos caprichos, dos ventos. São esses os
postais que forram o meu íntimo, é neles que assentam hoje as minhas
convicções. E são estas convicções de hoje, feitas do passado que me permitem
olhar para o passado, para esse peitilho irrequieto e enervante e sorrir.
Embora, convenhamos, que o peitilho continue a ser, para todos os efeitos, o
vestuário mais irritante que alguém jamais inventou!
 
 
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