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sábado, 16 de outubro de 2021

 Tarde de inverno

Tarde de inverno, recolhida,
serena, pálida esmorecida,
crepita o fogo, amarelado.
cai o livro, vagaroso
os versos,
melancólicos,
esvaem-se, ondulados
numa doce sonolência,
tempo e espaço difuminados
deliciosa harmonia
de uma tarde de paz, sossegada
só a alma, agitada
fervilha, empolgada
de poesia inacabada.


O olhar aberto de par em par
sobre o incomensurável infinito
plano, silencioso e sossegado.
Nada me limita, nada me prende, nada me impede,
de estar, ir e voltar
e de tecer-me dos filamentos
que o sol desprende
para fechar o céu ao mar
num abraço fraterno
sem princípio nem fim
nem lugar.











 Momentos de confinamento poètico

Poesia, meu amor,
é escrever-te
nas palavras
em que em mim te inventas
cada dia
é cantar-te, devagarinho
nos acordes
em que em mim te recrias
com fantasia
é pensar-te com rebeldia
é viver-te, sem pensar
se o que escrevo por te amar
se chama poesia.

 Um amor eterno

A beleza tem lugares, momentos, cores, formas, recantos. Pode ser imponente, espampanante, fascinante, subtil, discreta, suave. Tem temperatura. Pode ser quente, morna, fria ou gelada. Não são precisos Manuais nem tratados, teorias nem aulas magistrais. Nem quem nos ensine. Ela interpela-nos. Ela seduz-nos. Envolve-nos num abraço que traz paz, harmonia, felicidade. A Natureza é especialista nestes enamoramentos...a beleza que nos oferece é irresistível. Eu vivo apaixonada desde que para aqui vim viver, para este lugar onde a Natureza e o Homem construiram, sem querer, uma fonte inesgotável de beleza. Podíamos escrever uma bonita história de amor, um romance daqueles que já não se usam, que ninguém gosta, de preferência de cor lilás, num entardecer de outono, esbatido e lânguido, fino, sem ninguém. Mas não saberia onde por um ponto final. Quando penso que já chega, vêm entardeceres como o de hoje e tudo recomeça como se fosse a primeira vez. Ou a última.

 Adormecer de amor no sonho mais bonito de setembro

Passeio de setembro pela serra. Cada uma destas imagens são apenas tentativas de capturar o estado de espírito que se cria à medida que vamos entrando pelo caminho dos castanheiros. Espaços recolhidos de sombras e frescura, instantes de luz que se agitam entre as folhagens, muros que crescem em forma de trepadeiras e fetos rendilhados, portões que escondem os mistérios de familias que se apagaram nos tempos, jardins onde o amor um dia foi revelado nesses bancos à volta de um tanque esverdungado, vazio de água mas cheio de sonhos românticos numa noite de verão. O jardim mais bonito da casa mais romântica de Sintra, abandonados esquecidos, silenciosos, adormecidos. Trocava a minha casa por esta so para poder sentar-me à beira do lago coberto de nenúfares, perder o olhar nos canteiros cheios de lilazes, ouvir Schubert, esperar que o luar apareça no cimo da serra, dar um gole num tinto profundo, enroscar-me numa manta e adormecer de amor! Que bom que é sonhar...

 Histórias e lugares de outro mundo

Por isso lhe chamam o Monte da Lua. Porque é aqui que a lua nasce, entre o rendilhado das folhagens e abrigada pelo pedregal agreste. Estou convencida que a lua é um joguete que as fadas, os elfos e os bruxotes crianças se atiram uns aos outros antes de ir para a cama e deve ganhar quem consegue que a lua fique pendurada no céu e vá ganhando altura...Houve um anoitecer em que, ao fechar as portadas do quarto, me pareceu ouvir gorgolhejares de gargalhadas infantis no momento em que a lua, ágil e destra, saltava por detrás da torre dos Mouros e se agarrava ao azul do fim do dia, aqui mesmo, a poucos palmos acima da minha janela. Depois, depois é aquela luminosidade que só ela sabe como criar para que o Monte da Lua, à noite, pareça um bosque encantado feito de ramalhetes de folhas de luz agitadas pela brisa e, de certeza, pelas mãozinhas traquinas de umas crianças que não são deste mundo. Como esta história. Adoro aqui viver.

 Viver para ser livre.

Eu lamento, mas não creio nesse senhor Deus todo poderoso, criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis nem no seu filho que desceu do céu e se fez homem e que ressuscitou para provar que uma segunda vida existe, melhor do que a primeira, porque será eterna e gloriosa...e até podia acreditar porque fazendo-o até se tornava mais fácil aceitar que o que sofremos, enquanto humanos, possui uma explicação que dá sentido ao sofrimento, por muito duro, estúpido e inexplicável que seja.
Infelizmente, tudo é bem mais cruel, duro e simples do que essas explicações que nos prometem uma vida gloriosa, luminosa, eterna, angelical e harmoniosa, depois de termos passado um verdadeiro calvário, e, nalgumas ocasiões, bem poucas, por acaso, alguma felicidade, cá nesta terra onde surgimos de umas células de uns e nos apagamos para alimentarmos o pó celestial, esse sim, eterno e imortal.
Distrai-nos da essência desta nossa existência pensar que o amor desse Deus justifica tudo, explica tudo, penetra em tudo, está em tudo, mete-se em tudo e tudo ilumina e cobre. Arrumamos o pensamento nessas histórias de fadas que não existem e abdicamos de pensar em como podemos ser, efetivamente, mais felizes enquanto existimos.
Eu não sei amar como Deus me amou porque não faço a mais mínima ideia de como este me amou ou me ama. Não sinto em lado nenhum, em dia nenhum, em ocasião nenhuma esse tal dito amor, não o vejo em lado nenhum, em ninguém, não existe...lamento. Era fantástico que tudo acontecesse como nos explicam os que explicam a existência e as consequência desse amor divino, celestial e complexo do Deus criador de tudo. Li e leio essa palavra de Deus que ficou escrita por 4 envangelistas e a verdade é que tenho muita dificuldade em comprovar, na vida que tenho vivido, algumas das coisas que por lá se escreve. É certo que fala no amor como sendo a energia que tudo explica, tudo justifica, tudo ampara. Eu acredito que esse amor, essa forma de amar, de ser amado é um objetivo de todo o ser humano. Mas que isso seja divino ou que prove a existência de um divino qualquer, lamento mas não acredito nem aceito como explicação do mundo em que vivemos.
É por isso que urge tanto fazer tudo aquilo que dá sentido à nossa vida. Amar as pessoas que nos enchem de felicidade e gerar momentos que nos trazem paz, nos enchem de alegria, nos fazem sonhar, acreditar, perceber, perdoar. Não preciso que exista um Deus por trás da cortina de onde saio para o cenário representar a minha peça e para onde volto quando acaba a minha vez. Não há lá Deus nenhum que me criou, não há Deus nenhum que me serviu de ponto nas aflições nem Deus nenhum que me abriu os braços e me acolheu no final da minha peça.
O teatro, o cenário, os bastidores, a peça, o ponto, os atores, o público somos seres humanos que nascemos e morremos e isso é tudo, isso é a nossa vida.
Que pode ser brilhante ainda que acabe no momento em que deixe de respirar, o coração parar e a consciência se perder. Que não é menos intensa, nem reta, nem honesta, nem profunda, nem cheia e plena pelo facto de não se fundamentar no credo cristão, católico, budista ou muçulmano ou de qualquer outra religião na qual nos refugiamos para não aceitar que a vida e aquilo que nos acontece e construimos no tempo em que o nosso corpo aguenta estar vivo.
Eu rezo, sim mas não a Deus senão à minha consciência, à minha fonte de amor, ternura, compreensão, respeito, paciência que me deram os meus pais e que alimentei com tudo o que aprendi dos Homens e que me foi dado pelo seu amor e pelo amor que geraram em mim. Rezo para seguir o exemplo de outros que são melhores do que eu e peço para que a minha razão, o meu coração se inspirem nas suas vidas doutas e sábias.
É tão diferente a vida sem a sombra desse Deus a quem devemos obediência cega e do qual não podemos renegar. É tão mais inteligente fazer as coisas não porque assim mandam os preceitos mas porque é assim que se deve agir por respeito e amor ao próximo. Um amor que Jesus Cristo, o Homem pregou e praticou, segundo dizem as escrituras, claro. Como Homem e Cidadão foi exemplar. Como muitos outros e outras cujas vidas são verdadeiras orientações ara se ser feliz enquanto aqui estamos. E ponto. Sofremos, enquanto aqui estamos porque o corpo é um ser vivo e portanto perecível. Sofremos sim, porque nem sempre amamos o próximo como gostávamos de ser amados. Sofremos, sim, porque...sabemos tão bem porquê.
Deus, o tal Deus das escrituras inspira e guia e serve de exemplo para algumas coisas. Como o servem Confúcio, Heidegger, Goethe, Fernando Pessoa, Beethoven ou Herberto Helder. E tantos outros.
Faz-me feliz libertar-me da ideia de que o que aqui se passa não é o verdadeiramente importante mas sim o que vem depois. Lamento mas não é verdade. O que aqui se passa, os 60, 70, 80 ou 90anos que estamos por aqui são os únicos que temos para sermos felizes e fazer felizes, na medida do possível, os outros. Para cuidar o nosso planeta e descobrir outros mundos. Construir uma sociedade mais justa, mais à semelhança das pessoas boas que nos inspiram e não nas que degradam o sentido da vida.
Não creio em um só Deus, pai todo poderoso, criado do Céu e da terra...respeito quem crê mas isso será tudo. Respeito outras formas de pensar e justificar divinamente a vida. Mas nada mais. Não creio em divindade alguma. Não sei se creio em algo ou alguém. Crer é uma palavra menor, que diminui a dimensão humana, a limita, a coloca em segundo lugar. Creio naquilo que vejo e possui uma explicação plausivel e comprovável. E sou, por isso, mais livre. E ser livre é um dos sentidos que quero dar à minha vida. E lamento mas um Deus, seja ele qual for, é uma limitação à minha liberdade.

 Chamou-me a atenção o meu querido amigo Zé Vasco Pimentel, amigo dessa infância que nos cai em cima quando, por distração, abrimos o primeiro armário do nosso quarto das memórias, que o tempo está guardado nas coisas. É uma grande verdade, Para nos apropriarmos dele, basta olhar para um objeto, agarrar um pensamento e obrigá-lo a descascar-se como se de uma Baboushka se tratasse, parando, quando mais nos apetece, na estação de uma das pequenas aldeias da nossa memória para passearmos pelos momentos que o nosso estado de espirito, caprichoso, escolheu, nessa tarde. Eu habito, nesta casa, que agora é minha, em cada um dos objetos que me envoltam, desde que nasci. Desde que me lembro e me consigo pensar que eles habitam comigo. Embora nem todos me pertençam, pertencem à minha memória, ao meu tempo que neles também já existe. Não tenho apego às casas porque aprendi a mudar-me com a memória e a colocá-la pelas casas por onde vou passando, nos objetos, nas rotinas, nos percursos, nos gestos, nos ambientes recriados. Onde estou, sou, e comigo, a minha memória. Momentos felizes, os de desfolhar o tempo guardado. Nas coisas e em nós.

 Eternidade

Mais uma manhã gelada em Sintra. O despertar do sol demora e os palácios resistem em abandonar o seu encanto diáfono, difuso, misterioso. Até a bruma, sempre tão espevitada e um pouco arrogante, resfriou e não sai dos seus cantinhos, enrolada na sua humidade. São momentos sublimes. Como sublime é a vida que os possui e os pode gozar. São estes rosas e pêssegos e azulados esbatidos, aguados, tão tímidos que só se conseguem ver quando tudo ainda dorme. É a maravilha da baixa intensidade, próxima do silêncio, da quietude, da paz, da eternidade.

 A casa dos meus sonhos

Passear por Sintra tem estas surpresas. De repente, no dobrar de uma esquina, à beira do caminho, recôndita e inesperada, surge a casa com que sempre sonhaste, o jardim das tuas deambulações, o recanto que sempre imaginaste, o forro da tua alma romântica e um pouco solitária e incompreendida. Sem estar à espera, ei-los os nenúfares que sempre imaginaste que flutuariam no lago que existiria no teu jardim secreto e desejado. Esse jardim cujo desleixo e abandono está no ponto de equilibrio exato que o teu sentido de ordem e arrumação permitem. Um jardim de cores suaves, cheio de sol e repleto de zonas sombrias, melancólico e triste mas pleno de momentos sublimes, delicados, doces, repousantes, românticos. Jardins onde queremos que nasça um amor, floresça uma paixão, amadureça uma entrega a algo ou alguém que o mereça, o deseje, o espere. Que aventura! Que delícia! Que maravilha!
A casa dos meus sonhos podia ser esta ou outra à beira dos caminhos de Sintra ainda por descobrir e são tantos e tão variados que nem sei por onde começar. Apenas sei que são surpreendentes e que com eles e neles desponta esta veia romântica que todos temos e todos temos abandonada e esquecida e relegada para segundo plano. Impera o realismo e esquece-se de que a alma precisa destes tons suaves, delicados, sombrios, belos, sugestivos, evocadores, inspiradores, embora um pouco délabrés e fora das grandes avenidas da atualidade. É de momentos e de lugares como este que o nosso coração poluído e cansado precisa para sentir que nesta vida nem tudo se contabiliza, nem tudo se racionaliza nem tudo tem que existir realmente, para sermos felizes. Pelo contrário. Muito pelo contrário. Na casa dos meus sonhos tudo é possível sem chegar a sê-lo e esses momentos de sonho fazem de mim uma pessoa feliz!

 Jardim dos amores

Amo tanto esse possível que é por vezes o amor
A tua palavra amável, o teu suspiro, o teu ardor.
Um beijo roubado, uma promessa, a saudade, a dor
Amo tanto o que imagino ser possível por amor
Um jardim escondido, uma casa abandonada,
Um lugar sózinho, um abraço por dizer
Tantas palavras doces, baixinho, atropeladas
Um poema que que levas dentro e me entregas a tremer.
O amor é tudo isso, tão possivel, a acontecer
Dois braços entrelaçados que se apertam até doer
Nesse jardim romântico que sonhei ao amanhecer
Que mais, que outra coisa vou eu querer
Desta vida curta, complicada e pra esquecer
Que os os teus braços apertados, apertados, até morrer.
Histórias que vêm com a lua
A nossa primeira lua cheia do ano veio-nos espreitar de madrugada quando a manhã ainda dormia entre as folhagens da serra e a passarada estava encolhida ao seu lado. Passeou a sua luz de prata entre as núvens e, de quando em quando, quando se dissipava a escuridão que a envolvia, deixou que brilhasse, por breves instantes aquela sua aureola plena de graça que faz dela uma das divindades que o céu nos emprestou.
É assim que pode começar uma história. Ou acabar. Ou ser apenas uma imagem de passagem, um cenário com mais ou menos personalidade. Escrever bem não é tanto saber escrever mas sim ser capaz de prender a atenção de quem passava por ali e olhou sem querer e...que ficou. Não precisa de ser eloquente nem rebuscado nem, pelo contrário, minimalista. É a imagem que cria que desperta interesse, a vida, o sentimento, a história, a realidade. As palavras são apenas a roupa que cobre a nudez que atrai.
Em silêncio, isso sim.

 Lá fora, o calor do meio-dia. Já apetece. Deixar para trás as penumbras descoloridas, as tardes entre mantas, a humidade, o recolhimento, dias e dias entre brumas, nevoeiros cerrados e a chuva que não se acaba. Abrimos as portas para o jardim pelo ímpeto de ir em direção à luz, queremos cor, calor, o ar do jardim, ir, correr, É tempo de sair. De si, do recolhimento, do espaço exíguo e limitado, do olhar perdido em busca do horizonte através dos vidros embaciados. Hoje abriram-se as asas e voámos sem medo ao sabor da liberdade. Por fim!

 O que a vida nos dá só nós sabemos

Sigo o entardecer entre as ramagens das árvores à frente da minha janela, as últimas canções dos pássaros que se preparam para recolher, sinto o primeiro calor que se vai do corpo num arrepio, esmorece a luz, esbate-se o horizonte, avança o sossego, a quietude, é quase hora do silêncio se impor atrás dos raios de sol que descem, descem pela serra abaixo até à linha do mar e dos rosas azulados, aquelas cores tão impossíveis como a harmonia do piano que sobe e desce e sobe e desce como se fosse uma renda a adornar este momento sublime em que o dia finaliza nestes acordes profundos e cheios de um volume ondulante e perfumado como o afrutado deste tinto sensível e delicado.
São os anjos, as fadas, as nereidas, os duendes, esses habitantes da fantasia exuberante e romântica que entram pela minha janela cavalgando os últimos raios de luz e os acordes de um piano que arrepia, comove, apazigua, concilia, oiço o último chilrear do dia, o sol já se foi, sobe a lua, tímida, por trás do palácio encantado, o entardecer deu lugar à noite, pouso o copo vazio, o piano calou-se, a luz foi-se, eu e o silêncio azulado da noite através da janela, que mais nos pode dar a vida que não estes momentos de beleza infinita e sublime...

 Palavras sentidas, gastas, baratas, de toda a gente

Adorava passar a vida a escrever. Deixar correr a tinta por tudo aquilo que me atravessa a alma, se cruza no meu pensamento, carrega a minha memória, enche e preenche a minha mente, coisas simples, a maior parte das vezes coloridas como a natureza, leves e ligeiras como a brisa, essa onda de vento que faz bailar a fantasia e espalha alegria pelo ar. Tudo o que gostava de dizer cabe em meia dúzia palavras que não pesam muito nem estão contidas nas lombadas doutas e literárias dos grandes, longe de mim e disso, caibo em pouco e de pouco preciso para expressar-me e contar o que sinto que não é mais do que o produto do que vejo, à minha volta. Podermos ser tanto, se soubermos sair de nós e ser o que nos rodeia, trepar como as madressilvas, brotar como a flor de laranjeira, esticar-nos pelo raio de sol fora até chegar ao horizonte, a esse recanto onde só se chega filtrado, suavizado, esbatido. Sou pelo dia fora até chegar onde quero, só preciso das palavras, de umas poucas palavras emprestadas da maioria das pessoas, esse sentir universal que é familiar a todos e no qual todos se sentem representados.
Escrever é dar voz a quem não tem e porém tem tanto para dizer. Palavras simples, palavras baratas, palavras gastas, palavras sem ambição. São essas as minhas e era delas que gostaria, eu, de preencher o meu quotidiano, de não fazer nada mais do que escrever essas palavras, sentidas, gastas, propriedade de toda a gente, preto no branco, para quem quisesse lê-las.

 Meu querido pai,

Hoje, 19 de abril, é o dia em que faz anos. É um dia que tem magia. Basta dizê-lo para que se levante uma poeira de memórias que enchem por completo o pensamento e nos fazem sorrir. O pai estava sempre presente e quase todos os dias tinham um pouco de si, mas o dia 19 de abril era mesmo seu e muito seu, não era? Era raro não haver uma festa, um almoço, um jantar, em Lisboa ou no Banzão, com a família, só ou com as centenas de amigos que tinha. Lógicamente, e também por isso, o dia dos seus anos era de todos, implicava todos, o pai estendia-o a todos os que faziam parte do seu universo, que era galáctico...Em Lisboa, com cadeiras emprestadas, no Banzão com toldos improvisados, tivessem sido os 40, os 50 ou um número intermédio sem qualquer significado como fosse o 47, por hipótese. Era mágico, era festivo, de uma alegria contagiante. Era época de favas e morangos e portanto, lá saiam aquelas horrendas favas guisadas que deixavam a unha preta quando as descascávamos entre todos e os gelados de morango da praxe. O presente? Não digo. Vá lá, diga lá..., perseguia dias antes, incapaz de esperar com paciência a surpresa, menino pequeno, menino mimado, menino habituado a ter e a conseguir tudo por causa daquele seu irresistível charme sedutor. Não tenho saudades do passado...mas dava tudo para que estivesse aqui.
Ontem juntámo-nos como teríamos feito sempre. Não foram favas porque ainda arrasto o trauma das peles amargas que não iam para baixo nem com água e que acabavam, trituradas de tanto mastigar no caixote do lixo, depois do almoço sem ninguém ver. Se ainda estivesse entre nós, lógico, não teríamos tido outro remédio senão fazê-las, para satisfazer o seu capricho sazonal. Mas sem favas também esteve ali, entre todos. Faltavam alguns, o Casimir, em Barcelona, o Bernardo, o Mico, a Zinha e o Bernie, que o pai não conhece e que é a mais recente incorporação na família. Iria ver correr o Manuel Afonso, com a alegria no corpo irrequieto, como vimos correr o Diogo tantas vezes neste jardim, o Vasquinho e o António a dormitar à sombra de uma das árvores que entretanto já cresceu, também. Os netos que não chegou a conhecer, a Nônô e Luisinho, o Pitó e a Matilde, os escolhidos da Madalena e do Diogo.
A vida continua, sempre, e os factos vão-se sucedendo, dias após dia, sem termos que fazer nada senão vivê-los. E vivê-los também é falar com aqueles que fazem parte de nós ainda que não estejam entre nós, à mesa, a almoçar num domingo no jardim da casa de família, na véspera do dia dos seus anos. Até é possível que nem todos se tenham lembrado de si, é normal, mas isso não impede que tenha estado connosco. Vive no meu coração, pai, com todos os seus defeitos, as nossas embirrações, as nossas ternuras, os nossos desencontros, os nossos momentos de alegria, com as nossas histórias particulares que partilhámos, sem ninguém saber. Vêm duas ou três lágrimas aos olhos, claro, quando penso nesses dias 19 de abril felizes e despreocupados, cheios da sua alegria desbordante e contagiante acompanhado de todos e rodeado de todos, como gostava. Hoje em dia não se chora por coisas assim...as lágrimas são sinónimo de tristeza e a tristeza contraria a ditadura do sempre-em-pé seja económico ou político ou social ou cultural. Para mim, estas lágrimas alimentam. Água é vida. O sal dá-lhe sabor. Se não saltassem duas ou três traquinas do coração hoje, pai, seria bera, muito bera. Ontem fizemos uma saúde em sua honra. Hoje,
parabéns
, Finos. Pus três rosas do jardim na jarrinha ao seu lado. Uma pela mãe, outra por si. Outra pelo Bernardo. (Ah e mudei a sala. Foi a surpresa. Não adivinhou. Ganhei eu!)🥰

 Eu penso, logo existo, dizia Descartes. Posso pensar em qualquer coisa, pois existo. No entanto, embora exista, há algo no qual, por muito que eu me esforce, não consigo pensar: quando inicio o caminho da procura do que seria ou não seria se o que existe não existisse, não consigo nem sequer ter um só pensamento sobre essa nossa não existência coletiva. Porque o meu pensamento não consegue pensar sobre a não existência. Logo, a não existência é impensável…aflige-me. São paisagens àridas, vazias, sem palavras, sem sons, sem cor. Faz bem, o meu pensamento em não se aventurar para além deste Bojador do conhecimento.

 O maior júbilo da existência é pensar.

Continuando na senda da reflexão sobre o pensamento, melhor do que qualquer viagem física, interessa-me saber a razão pela qual não ouso abrir o portão e entrar nessa obscura e assustadora realidade que é a não existência. Quando éramos pequenos, ao lado da nossa casa no Banzão existia uma casa abandonada. Das autênticas, nada lhe faltava. Portas entreabertas, janelas de vidros quebrados, telhados semi destruídos, mantos de teias de aranha que cobriam móveis já sem cor...aventurar-se e transpor a porta daquela paisagem aterradora não era para todos, o medo ao desconhecido, aos monstros que habitavam, naquela altura, nas casas abandonadas das nossas mentes, impediam-nos de cruzar essa fronteira. Não era tanto o perigo de nos acontecer algo físico, era mais o receio de encontrar algo ou alguém que não era deste mundo...
O mesmo acontece com o pensamento que não ousa ir mais além do explicável, do conhecível, do determinável, etiquetável. Se a realidade onde vivemos não existisse - nem galáxias, nem mundos, nem cosmos nem sequer este vazio, apesar de tudo, matemáticamente definível e palpável - é no umbral dessa portal que o meu pensamento se imobiliza e se nega a continuar. Porque não consegue imaginar, não é suficientemente creativo para ousar encontrar um sendeiro, não tem apetrechos para abordar essa paisagem?
Não sei. Quando era pequena, este pensamento, que então já me atravessava o espírito, provocava-me vertigens físicas, tonturas a sério. Este mau-estar físico fez com que, durante muito tempo, evitasse pensar este impensável, pois ninguém gosta de ter tonturas. Hoje, isso já não me acontece, felizmente, e embora ainda exista esse receio de dar largas ao pensamento aventureiro, estou em crer que a questão que me coloco e que me interessa tem mais a ver com a essência e alcance do pensamento do que com a aventura de explorar o que não existe para além das fronteiras da existência. Não é tanto o que é que está para além do meu pensamento senão o pensamento em si, como prova de existência, como essência da minha existência. Essa é que é a verdadeira questão. O que é o pensamento?
Georg Steiner escreveu um brevíssimo livro em que diz que o pensamento é uma tristeza e dá-nos dez razões para isso. Tenho grande admiração e respeito por Steiner, embora tivesse sido um grande snob da erudição e o livrinho é uma delícia para quem pensar é um dos desportos favoritos. Pensar não pode ser uma tristeza, de maneira nenhuma. Pensar é o que melhor define a vida, é o seu lado mais brilhante e luminoso, fonte de um júbilo que se estende até às fronteiras da nossa existência. A partir daqui, até é possível imaginar a criação de agências de viagens que organizam expedições aos confins do pensamento. 🙂
Bom domingo.

 De geração em geração

Uma imagem só é bela
quando leva nela essa vivência,
passada, presente ou futura,
de um amor que perdura.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

A minha terra de portões enferrujados
Passo diante deste portão abandonado todos os dias, há anos e cada vez que olho através desta grades ferrugentas e envelhecidas de verdete, uma outra nova história nasce para ser contada, quem sabe um dia que tenha tempo para apenas escrever o que me passa pelo pensamento. É um portão que inspira um olhar romântico, a perder de vista na eventual história que poderá ter-se desenrolado nos dias em que se abria, bem arreado e reluzente, de par em par para uma ladeira bem arranjada de árvores até à casa senhorial que se vislumbra entre as folhagens agora crescidas em desordem. Uma casa senhorial austera e sem outros floreados que os de ferro forjado que a protegem de intrusos inesperados, em cada uma das portas que se abrem, com imponência, sobre o terreiro outrora de saibro liso e imaculado e hoje curvado e coberto de musgo e ervas daninhas.
A minha terra são estes portões sentinelas de histórias por contar, de vidas por conhecer, de amores por ilustrar, de segredos por descobrir. Quem sabe ao certo o que se esconde por trás destes ferros abandonados mas que continuam, obstinados, a proteger o que só a imaginação de quem passa por diante e pára, se atreve a contar?

 Gloria in excelsis…

Sábado. Tanto para fazer. Será para ler? Escrever? Jardinar? Pensar ou passear? Arrumar, limpar, guardar, conversar…viver. As horas flaneiam, um pouco por aqui, outro por ali, entre as letras e as cores, cá dentro, lá fora, sem eira nem beira, é sábado, é setembro, é o voltar à realidade do dia-à-dia, sem pressa, em tons suaves, pastel, quase diáfonos, é isso. Hoje vai ser entre umas coisas e outras, um “doce balanço” entre o que foi e ainda vai ser, como essa folha vermelha de vinha virgem que descola lentamente da rama e pirueteia, sensual e caprichosa, pelo espaço de um sábado por pensar. Glória in excelsis universus!

 A sabedoria que há em ser ateu

Deus não existe. Apenas na mente de uns quantos, muitos, é possível, que precisam dele para não se sentirem tão sós e tão perdidos na escura e fria imensidão deste nosso Universo. E implacável, porque um tufão, um terramoto, um incêndio não têm a mais remota clemência por nós, que irónicamente veneramos um Deus que é, alegadamente, a fonte e o autor da bondade e da misericórdia e que é nosso pai e nos estima com loucura. Mais vale que a nossa inteligência se dedique a cultivar a solidariedade e a fraternidade entre todos, como forma de colo do qual nos podemos socorrer ante este sentimento de orfandade e de pequenez tão avassaladores.
Eu não consigo sentir conforto apelando a uma espécie de ser não humano que não conheço, não sei quem é, nunca vi e que só irei, supostamente, ver quando deixar de existir. Não me sinto nem mais nem menos só ou perdida por viver neste desconforto de não saber dar resposta às grandes incógnitas que nos rodeiam e que nos são tão familiares. Quem te deu origem, matéria ínfima que compões estes meus dedos que percorrem o teclado atrás das letras do alfabeto que sustenta esta reflexão escrita? Não sei. Desconheço. É certamente a mesma sensação que tinha o meu primeiro antepassado ante realidades que hoje nos são banais e que então eram incógnitas que punham em xeque a sua segurança.
A religião, infelizmente ou felizmente, não me interessa. Não me satisfaz a curiosidade, não me salva das ansiedades, não me soluciona as minhas contradições, não me adoça a morte crua e nua que nos faz desaparecer do mapa, da face da terra e da memória dos vivos, um dia, mais tarde ou mais cedo. É um empecilho, a religião, distrai-me, afasta-me do caminho, é essa poeira que traz o vento suão e que cobre tudo com um fino véu que entope, entorpece e esconde. A verdade. Esconde a verdade. Mascara-a, à verdade. Como uma venda que tapa o olhar e nos faz perder o norte, a religião impede-nos de ir atrás desse impulso tão humano de descobrir, de desvelar, destapar e ver...Os dogmas que a religião nos impõe são esses inquisidores que nos vigiavam e nos sancionavam quando, nessa eterna procura pela descoberta da verdade, encontrávamos as razões que explicavam o que aparentemente era obra desse ser que nele concentrava as causas primeiras e últimas de tudo o que nos rodeava.
Prefiro sentir-me só a sentir-me enganada. Ir pelo caminho certo sem saber onde vai dar, a tomar o caminho errado com a promessa de uma vida eterna que não existe...Prefiro vestir a solidão das dúvidas e das angústias com a solidariedade do que com a piedosa mentira. Prefiro o abraço humano à oração de contrição, a responsabilidade à culpa, a. solidariedade querida à comunhão obrigada. Partilho por um sentimento de fraternidade pelo próximo sem necessidade de trazer à colação um pai divino cuja paternidade irrefutável me obriga a sentir-me irmão de todos. É à minha consciência educada e delicada que devo a abertura ao próximo, às coisas e a todos os seres que compõem o Universo.
E são todos eles e tudo isso que enche a minha solidão de sentido. Neles procuro todos esses conceitos, realidades e circunstâncias que um dia pertenceram à religião na qual militava: a Paz, a Beleza, a Harmonia, a Solidariedade, a Fraternidade, a Bondade, o Respeito...Tudo e todos à minha volta me ensinam, cada dia, em cada circunstância, aquilo que preciso para não me sentir só, para não me sentir perdida nem órfã. Sou filha de tudo o que me rodeia, irmã de todos com quem partilho a minha existência. É possível que o Universo não me forneça todas as respostas às questões que tenho. De pequena, de tanto perguntar, a minha mãe ofereceu-me um livro chamado "Porquê". Continuo, hoje, com algumas das dúvidas de então e acrescentei-lhes outras quantas que na altura não me atormentavam. O Universo tem mais dúvidas do que respostas. Aceitar que morreremos sem as desvendarmos é a sabedoria que há em ser ateu. Tem sido este o meu caminho. Percorro-o porque me faz sentido. Porque me torna mais capaz. E também mais feliz.

 Fustiga, abundante,

Chuva gorda e cintilante
O ramo fino e delicado
Da última rosa do verão
De cada vez
Desprende-se graciosa e delicada
Uma pétala colorida,
Que balança, embalada
pelo vento
Até pousar no chão
Coberto de rosas
desfolhadas,
Amor perdido,
amor plantado

 A linha da tua vida

Vimos dessas raízes lançadas na vida, no mundo, na terra não sabemos bem quando nem ao certo por quem menos ainda com que intuito e porém
Porém avançámos com determinação, ousadia e nem sempre em linha reta abrindo caminhos onde não os havia, lançando pontes, gerando certezas, tecendo malhas, passados, presentes
Demo-nos as mãos, beijámo-nos loucamente e
Lutámos, uns com os outros e uns contra os outros e vezes sem conta, demasiadas, por nada que valesse a pena e chorámos, sózinhos por tudo o que fizémos em vão e porém
Porém, emergimos, de manhãzinha, bem cedo, na aurora de um rosa tenro e esbatido, e erguemo-nos em casas, castelos, catedrais e palácios e conquistámos, com força, unhas e dentes
terras, espaços, lugares, títulos, doutos, elaborados, complexos, diferenciados
espuma.
Sentámo-nos muitas vezes ao final do dia a observar e ouvir a espuma da onda que rola pela beira da praia e se estende como um lençol de luz pela areia de pedrinhas coloridas, iluminando-as de ouro, da cor dos teus cabelos,
Passo os dedos pelos teus caracois perfeitos e deslizo as mãos pelo teu corpo enxuto e firme, é a hora do sol por e há ainda tanto para fazer, contar, viver e ficamos a ver como se apagam as pegadas do caminho que nos trouxe até aqui
Já fui, já não sou, será que haverá ainda alguém, que não conheço, para ser depois de tudo e antes de voltar ao que um dia alguém me sonhou ser?
Sorris, que sabes tu, afinal de mim, de ti, de nós, de tudo? Nada. Apontas, aquela flor, aquela rosa, delicada e elegante, aquele ramo de camélia coberto de botões brancos ou o limoeiro em flor, quem sabe?
O que queres ser meu amor companheiro, que me guias e segues há tantos anos nesta incógnita que nos serve de firmamento repleto, agora sim, de pequenas pérolas de luz diamante, contra um fundo de escuridão e que cruzam o universo intemporal e chovem, molhadas, na terra que as acolhe e se lançam, à conquista de uma nova vida que não sabemos como nasce nem como cresce nem porque floresce e murcha e cai, um dia, sabe-se lá quando, desfolhada, silenciosa, etérea e se junta
a outras sementes sem fim. Onde tudo recomeça.
Arrefeceu. A noite cobre a terra. Ficamos em silêncio. O mar recolheu a casa. A lua já espreita na pontinha dos pés pelo rebordo da serra. Deixa-me ver a palma da tua mão. Vês? É essa aí. A linha da tua vida.
Chamou-me a atenção o meu querido amigo Zé Vasco Pimentel, amigo dessa infância que nos cai em cima quando, por distração, abrimos o primeiro armário do nosso quarto das memórias, que o tempo está guardado nas coisas. É uma grande verdade, Para nos apropriarmos dele, basta olhar para um objeto, agarrar um pensamento e obrigá-lo a descascar-se como se de uma Baboushka se tratasse, parando, quando mais nos apetece, na estação de uma das pequenas aldeias da nossa memória para passearmos pelos momentos que o nosso estado de espirito, caprichoso, escolheu, nessa tarde. Eu habito, nesta casa, que agora é minha, em cada um dos objetos que me envoltam, desde que nasci. Desde que me lembro e me consigo pensar que eles habitam comigo. Embora nem todos me pertençam, pertencem à minha memória, ao meu tempo que neles também já existe. Não tenho apego às casas porque aprendi a mudar-me com a memória e a colocá-la pelas casas por onde vou passando, nos objetos, nas rotinas, nos percursos, nos gestos, nos ambientes recriados. Onde estou, sou, e comigo, a minha memória. Momentos felizes, os de desfolhar o tempo guardado. Nas coisas e em nós.
Maria Antónia Turras, Vasco Pimentel i 4 persones més

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