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sábado, 16 de outubro de 2021

 Meu querido pai,

Hoje, 19 de abril, é o dia em que faz anos. É um dia que tem magia. Basta dizê-lo para que se levante uma poeira de memórias que enchem por completo o pensamento e nos fazem sorrir. O pai estava sempre presente e quase todos os dias tinham um pouco de si, mas o dia 19 de abril era mesmo seu e muito seu, não era? Era raro não haver uma festa, um almoço, um jantar, em Lisboa ou no Banzão, com a família, só ou com as centenas de amigos que tinha. Lógicamente, e também por isso, o dia dos seus anos era de todos, implicava todos, o pai estendia-o a todos os que faziam parte do seu universo, que era galáctico...Em Lisboa, com cadeiras emprestadas, no Banzão com toldos improvisados, tivessem sido os 40, os 50 ou um número intermédio sem qualquer significado como fosse o 47, por hipótese. Era mágico, era festivo, de uma alegria contagiante. Era época de favas e morangos e portanto, lá saiam aquelas horrendas favas guisadas que deixavam a unha preta quando as descascávamos entre todos e os gelados de morango da praxe. O presente? Não digo. Vá lá, diga lá..., perseguia dias antes, incapaz de esperar com paciência a surpresa, menino pequeno, menino mimado, menino habituado a ter e a conseguir tudo por causa daquele seu irresistível charme sedutor. Não tenho saudades do passado...mas dava tudo para que estivesse aqui.
Ontem juntámo-nos como teríamos feito sempre. Não foram favas porque ainda arrasto o trauma das peles amargas que não iam para baixo nem com água e que acabavam, trituradas de tanto mastigar no caixote do lixo, depois do almoço sem ninguém ver. Se ainda estivesse entre nós, lógico, não teríamos tido outro remédio senão fazê-las, para satisfazer o seu capricho sazonal. Mas sem favas também esteve ali, entre todos. Faltavam alguns, o Casimir, em Barcelona, o Bernardo, o Mico, a Zinha e o Bernie, que o pai não conhece e que é a mais recente incorporação na família. Iria ver correr o Manuel Afonso, com a alegria no corpo irrequieto, como vimos correr o Diogo tantas vezes neste jardim, o Vasquinho e o António a dormitar à sombra de uma das árvores que entretanto já cresceu, também. Os netos que não chegou a conhecer, a Nônô e Luisinho, o Pitó e a Matilde, os escolhidos da Madalena e do Diogo.
A vida continua, sempre, e os factos vão-se sucedendo, dias após dia, sem termos que fazer nada senão vivê-los. E vivê-los também é falar com aqueles que fazem parte de nós ainda que não estejam entre nós, à mesa, a almoçar num domingo no jardim da casa de família, na véspera do dia dos seus anos. Até é possível que nem todos se tenham lembrado de si, é normal, mas isso não impede que tenha estado connosco. Vive no meu coração, pai, com todos os seus defeitos, as nossas embirrações, as nossas ternuras, os nossos desencontros, os nossos momentos de alegria, com as nossas histórias particulares que partilhámos, sem ninguém saber. Vêm duas ou três lágrimas aos olhos, claro, quando penso nesses dias 19 de abril felizes e despreocupados, cheios da sua alegria desbordante e contagiante acompanhado de todos e rodeado de todos, como gostava. Hoje em dia não se chora por coisas assim...as lágrimas são sinónimo de tristeza e a tristeza contraria a ditadura do sempre-em-pé seja económico ou político ou social ou cultural. Para mim, estas lágrimas alimentam. Água é vida. O sal dá-lhe sabor. Se não saltassem duas ou três traquinas do coração hoje, pai, seria bera, muito bera. Ontem fizemos uma saúde em sua honra. Hoje,
parabéns
, Finos. Pus três rosas do jardim na jarrinha ao seu lado. Uma pela mãe, outra por si. Outra pelo Bernardo. (Ah e mudei a sala. Foi a surpresa. Não adivinhou. Ganhei eu!)🥰

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