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domingo, 29 de janeiro de 2023

 21 jan 2023


A Rua da Arriaga.

A Rua da Arriaga. Chamavamos-lhe assim, simplesmente, à casa da minha avó Maria Emília e do meu avô João. Rua da Arriaga, que era onde ficava, no número 27 ao lado da casa do Prof. Fernando da Fonseca, de quem o meu avô era amigo, geminada com a do Prof. Leonardo Castro Freire, de quem também se era amigo. Médicos, todos. A casa foi construída pelo arquiteto Raúl Lino de quem o meu bisavô, pai da minha avó, era amigo e a sua traça tão simples mas tão genial ficou encrostada em inúmeros pormenores que faziam da Rua da Arriaga uma casa nobre sem arrogância, de costas para a rua, como se quisesse proteger a intimidade da família que nela habitava, generosamente aberta para o jardim nos pátios e nas varandas desde onde se contemplava o estuário de Lisboa até aos seus mais vastos horizontes.

A casa tinha um casaco de vinha virgem que a cobria dos pés à cabeça, de tal forma que nunca percebi de que cor estava pintada, se é que o estava...era a sua marca, a fotografia do seu bilhete de identidade. Verde na primavera, vermelho-dourada no verão e outono, aguentando-se assim até à primavera seguinte. Eu acho que o inverno não ousava levar com ele a folhagem, puritano, ninguém queria ver a menina tão vistosa, nuazinha, no inverno. Naquela altura era-se mais respeitador com as fachadas...

O meu pai não nasceu nesta casa (nasceu na Calçada Marquês de Abrantes, a Santos) mas mudou-se para ela de muito pequeno, tão pequeno era que sempre assumimos que a Rua da Arriaga tinha sido a sua única morada, até casar. Cresceu naqueles quatro andares, habituado a tudo o que de bom tinha a vida numa época em que a vida tinha coisas boas e tranquilas para dar a quem pertencia a uma determinada classe económica e social. Eram dois irmãos, o meu pai e o tio ZéFonso (o "A" ficava no tinteiro, de tão apressado) e cada um tinha o seu espaço de intimidade: um quarto, uma casa de banho e um escritório próprios, uma das razões pelas quais tinham muito pouco a ver um com o outro, diferentes físicamente, de feitio, caráter, com vidas divergentes que nunca se conciliaram apesar de todas as vicissitudes e voltas, cruzamentos e estradas paralelas que a vida lhes deu. Faltava-lhes aquela intimidade que nasce com as guerras e pazes pelo espaço, pelos brinquedos, pela liderança das brincadeiras. Nunca existiram murros nem abraços nem asneiras partilhadas e nunca tiveram a oportunidade de guardar segredos e ter lugares secretos conjuntos, roubar camisas ao outro e levar o blaser que não era o seu e que o outro guardava, religiosamente, para os dias especiais...É o que dá achar que o bem estar dos filhos se assegura oferecendo-lhes espaço próprio, como se nascessem adultos com as questões todas resolvidas e prontas para serem guardadas na prateleira de cima da estante ao lado da lareira...hélàs.

Uma casa, bonita como era a da Rua da Arriaga, linda, de sonho, inesquecível e inigualável, apesar de toda essa serenidade vital, alberga histórias de vida que se torceram e emaranharam naqueles andares, corredores, salas, espaços bem distribuídos e melhor atribuídos à intimidade solitária de cada um.

Excetuava-se a tia Palmira, a tia solteira que vivia com os meus avós, a fina, discreta e sábia tia Palmira...fica para outra altura. Assim que a casa despertar ponho aqui uma fotografia da querida Rua da Arriaga.


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