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domingo, 29 de janeiro de 2023

 Gotas da vida

Aproximo-me da vidraça. Chove. Desfoco, abstraio, o meu tempo é outro? Recordo uma infância chuvosa, persistente, dias a fio de botas, casacão, luvas e passe-montanha, o cheiro a lã húmida, as vidraças grandes, amplas da escola sem lá fora, como hoje as gotas que se abrem caminho e vão escorrendo por longos fios de água, dias sem cores, cinzentos, castanhos, azuis, verdes escuros da lã virgem, agreste, incómoda mas sem queixumes, era assim um inverno que começava cedo e entrava pela primavera dentro até ao dia em que cheirava a maio, a dias de sol na relva, passeios entre flores, dias compridos, coloridos, não sei se havia mais ou menos estações do que hoje, apenas sei que a monotonia descolorida e molhada desses dias que duravam meses não era sinónimo de tristeza nem de angústia nem de aborrecimento, muito pelo contrário. Havia pouco, fazia-se muito com muito pouco, as mesmas coisas serviam para muitas outras, muitos outros, peças de xadrez que se transformavam em exércitos, cartas em castelos, vestidos de papel, ferro, madeira e borracha dura, plasticina, loiça, porcelana,  moedas escuras que compravam momentos doces, vivíamos para dias marcados no horizonte longínquo do calendário, sonhados no final de dias iguais uns aos outros, adormecidos ao som de um radiador que irradiava uma luz incandescente, de fundo, como um besouro, sons, vozes que traziam paz. Chovia como chove estes dias, tão cinzento como naqueles dias, o mesmo tempo, as mesmas cores, até os mesmos cenários. Não, o tempo não é outro, repete-se, muito mais do que pensamos, pela vidraça, molhada e embaciada escorrem longos fios presentes e passados, recolhem gotas, uma aqui, outra ali, impressões, recordações da nossa vida.


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