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terça-feira, 25 de junho de 2024

Poemas inacabados


Tarde de inverno, recolhida
serena, pálida, esmorecida,
crepita baixinho o fogo, amarelado,
pouso as histórias do passado
versos soltos, esfarrapados
que se esvaem, sonolentos
na fumaça ondulante
silenciosa e baça.
Tarde de paz aparente
deitada na moleza
que pouco a pouco
se vai reduzindo
às brasas rubras,
e incandescentes
que fervilham na alma,
a mais crua realidade
que procura, insatisfeita,
incessante e inquieta,
a voz de um sentimento
que resiste, teimoso e inacessível
a ser palavra e melodia
de uma rima, um verso
uma canção, a poesia.
Entrada a noite,
o braseiro apagado,
na sala fria, só e desolada,
foi-se o encanto, a luz, o brilho
das memórias passadas,
reduzidos ao sabor triste e amargo
de um poema, para sempre
inacabado.

À querida tia Antónia Rebello de Andrade

 Hoje faz 89 anos a querida tia Antónia Rebello de Andrade. Para muitos, desconhecida. Para mim, família, no sentido amplo da palavra, na medida em que cresci ao som da sua existência na minha vida, em jantares, almoços, festas, momentos íntimos, momentos de enorme alegria e outros de profunda tristeza e dor, em que ela esteve sempre presente com o seu ar gozão, o seu cigarro, a musicalidade das suas pulseiras de ouro, a sua farta cabeleira loura, uma coquetterie que era e é um adorno a uma forma de ser e estar rochosa e incorruptível. Como dizia hoje de manhã, não existe um passado que termina. Existe um presente feito de realidades fïsicas palpáveis e de realidades que habitam o nosso ser, o nosso pensamento e se transmitem à nossa forma de agir como reflexos, como incorporações no nosso eu físico e que são tão ou mais reais que a realidade. A querida tia Antónia traz nela e com ela uma realidade que forma parte do meu quotidiano e por isso o celebro. Vai daqui para ela, para a querida tia Antónia Rebello de Andrade, para a Isabel RebelodeAndrade Santos e o Manuel Rebelo de Andrade, o meu abraço pelo dia de anos de hoje! Querida tia, parabéns!

😘😘😘

“Pinto Doce”, razão de ser

 Sumo de laranja marca “Pinto Doce”. Sem custos de transporte, sem custos para o produtor, garrafa re-utilizada, desperdício zero, máxima satisfação. Doce como a memória, a razão de ser, muito mais do que o sabor que vem com a recordação. Nada se perde, na Natureza, as nossas ações não são movimentos em vão, as nossas intenções trespassam o nosso corpo, viajam montadas nos comboios quânticos e impregnam as coisas, as pessoas, o nosso campo, o que nos circunda, onde tocamos, o que observamos, até mesmo o que pensamos…a árvore que deu este sumo foi plantada em intenção da minha mãe, no ano em que morreu. Não que ela gostasse de sumo de laranja em especial, mas como vontade de perpetuar a sua memória, o carinho e a saudade que deixou, o caráter que tinha, o feitio que era muito seu. Os seus anos bons, as suas amarguras, as suas tristezas e alegrias, a sua razão de ser. Não existe passado, apenas presente, é uma asneira monumental ligar a saudade a momentos do outrora. Hoje, aqui, a minha mãe está viva, a minha memória é o meu presente, sou eu, hoje, aqui e agora, o sumo exprimido de sentimentos que ela alimentou, que ela gerou, ajudou a crescerem e a solidificarem e que ajudaram a plantar esta laranjeira íntima, única, robusta e tão particular e especial como ela. Pensar é criar a nossa realidade, o nosso presente, a nossa razão de ser. Tudo o que já foi, é-o ainda e sê-lo-á sempre que quisermos e formos assim, como eu o sou agora, um presente que é eterno. Pinto Doce. Razão de ser.




A minha Pátria, diletante e fugidia

 A minha pátria é onde nasce, cresce, se reproduz, e vive e morre a beleza e harmonia das cores, dos sons, dos cheiros, dos horizontes escondidos nos recantos onde escorre a água que brota, sem pensar, irrequieta e traquina, entre os verdes das pedras lisas, redondas e escorregadias, são esses olhares que sonham até se perderem de vista e se confundem com o céu da cor do mar, lágrimas de saudade, soluços de amores, alegrias que se atiram contra as rochas e explodem em gargalhadas de espuma branca e salgada, abraços que escorrem e moldam a nossa sensualidade pela areia húmida até perderem o pé na cova onde borbulham águas revoltadas e correntes impetuosas que nos levam até onde está o ponto final no livro da nossa vida. Esta minha Pátria é a ternura, a devoção, o amor e a paixão que moldam a minha alma, me escrevem quem sou e me definem a razão última de ser, esta maneira estranha de sentir e a forma tão silenciosa e delicada de esgueirar-me por entre as coisas, roçar com a ponta dos dedos os seus aveludados, as suas rugas e durezas e deixar que a gota de água de cristal gelado escorregue, pelo bico da folha servil e disponível e se esgueire pelo corpo meio adormecido meio acordado entre os teus braços.

A minha Pátria não conhece o tempo
é tão diletante e fugidia
como o meu pensamento
ao despertar de cada dia.

A mãe.

 Pegou na forma de silicone, apertou-a pela base e três ou quatro cubos brilhantes e transparentes de gelo saltaram, caíram dentro do copo de cristal, rodaram, dançaram e escorregaram pelo arredondado do balão, uns atrás dos outros, uns em cima de outros, saltaram milhares de gotas do líquido transparente pela borda fora com o seu chapinhar alegre, divertido e despreocupado. Gargalhadas agudas como as faces bicudas de um diamante, brilhantes como os reflexos da luz do verão num cristal de mil faces, límpidas e transparentes como só a sua maneira de ser, sabia ser e era. Tinha sido, melhor dito. A sua morte, a sua ausência, o vazio que passara a ocupar na sua vida eram agora este estar inesperado que não tinha a sua forma física, estes sons estranhos que não eram a sua voz, estes gestos tão típicos seus mas que já não eram seus. Era, contudo, uma forma de estar que ocupava um espaço, preenchia um momento e dava sentido a uma presença, embora não estivesse ali, realmente. Eram pensamentos que se iam formando vindos de nada que fizesse sentido antes e se iam encadeando lentamente uns nos outros, enquanto, apoiada na bancada e olhando fixamente o balão, ía vendo como o silêncio ia fazendo desaparecer na água lisa e parada, a súbita e momentânea irrupção na realidade daqueles seus breves segundos mais longos que muitos minutos, da sua querida mãe.

À sua, disse em voz alta, enquanto pegava no copo e o levava à boca, de olhos fechados. Era assim, a vida depois da morte, a morte depois da vida. Era assim, agora, a mãe.

Fazer-se todo o sentido

 Nós todos somos muitos. Alguns de nós não levam neles os materiais que permitem criar ou solidificar os fundamentos de um ser-se que a partir dessas raízes cresce e se transforma em alguém com identidade própria, forte, possante ou não possuem a encubadora idónia para gerar personalidades que têm vidas próprias, cartão de cidadão e identidade suficientemente diferencida para se chamarem alguém diferente daquela que que lhes deu origem. É certo. Às vezes convivem em nós apenas tendências, explosões momentâneas de nós, estados de espírito, de alma, de humor, efímeros e passgeiros que não rompem as fronteiras de nós nem nos extravazam com caráter duradouro. Todos temos dias em que saímos da nossa zona de conforto identitário e nos materializamos em seres diferentes do nosso centro de gravidade com maior ou menor intensidade e vocação para solidifiarmos em algo diferente do que éramos ou somos. Ter consciência desta pluralidade e riqueza é ser-se sábio e compreender e aceitar que nada na vida possui contornos definitivos ou rígidos. Somos uma nebulosa sem fronteiras nem defnições de como ser sempre. E olhamo-nos ao espelho e por vezes surpreendemo-nos com o que vemos e temos medo. Não tenhamos nem queiramos matar os excessos de nós ou os dissidentes de nós porque eles só nos enriquecem e so nos dão uma maior capacidade para entender o mundo e os outros. Saiam de vós, oiçam as vossas vozes, entrem nos cenários que o pensamento imagina para vós e aceitem que o mundo não tem fronteiras nem muros nem divisórias e que nos podemos expandir para além da personagem que sempre foi a nossa. Essas imagens fixas e etiquetadas só existem na nossa Cultura impingida por temeroros, que não sabem como lidar com o desconhecido que não controlam. Expandam-se, sejam-se sem barreiras, oiçam-se na estereofonia e na polifonia dos vossos coros e orquestras internas. E sintam-se em todas aa vossas essências, escalas e tonalidades . Quem sabe se assim não fazemos mais sentido…todo o sentido. Afinal, o que somos!

As estrelas dos jardins de cada um

 Não conseguia dormir. O sono, irrequieto, obrigava-me a virar-me na cama de um lado para o outro, impedindo-me de pousar as pálpebras e deixar-me ir atrás da doçura da história que já tinha começado a imaginar. Dizia-me, baixinho, num sussurro, não, ainda não te podes ir, espera um pouco...contrariada abri os olhos, no escuro e foi então que vi a luz que brilhava tímida, da cor da neve, por entre as frinchas das portadas semicerradas da janela do quarto. Desci silenciosamente da cama, avancei descalça para a janela e abri devagarinho a portada. E lá estava, em cima da laranjeira sobranceira à minha janela, pousada entre as flores perfumadas da primeira primavera e o ninho do passaroco inquilino de já há uns anos e a laranja que ainda não estava para ser apanhada, uma estrela, de luz suave e singela, como se não quisesse dar nas vistas, a olhar, demoradamente os lugares do jardim, como se ali tivesse habitado desde sempre e agora se fosse embora, para sempre também. Reinava o silêncio e a quietude, no jardim adormecido e observei, atónita e hirta, como a pequena estrela ia passando os seus cristais de luz por entre as folhas e as flores e a penugem dos pássaros aninhados e os primeiros botões de jasmim que inspirou, com prazer, como se quisesse embriagar-se do seu doce e ia acendendo pela alameda de relva japonesa fora, as clívias, os jarros, as margaridas, a dama da noite e as pétalas delicadas da ameixoeira em flor, e abraçando, com ternura e um olhar comovido, as gotas de orvalho, amigas de uma vida inteira, parecia querer dizer quando pousou em cima da fonte e deixou cair parte do seu manto de luz e brilho no espelho de água onde dormiam, em sossego esses peixes coloridos com quem brincara tantas vezes. Parei de respirar para não perturbar a imagem imóvel e fixa daquele instante irreal em que uma estrela rodeada de colares de minúsculas pérolas de cristal se ergueu, abriu os braços delicados e finos, e as deixou cair sobre o jardim, como abraçando-o de luz e partiu, sem ruído, sem despertar ninguém nem alterar a quietude do meu jardim, iluminando à sua passagem as nuvens baixas que enchiam de névoa a ribeira, as copas escuras das árvores mais altas, o perfil da torre do castelo lá no alto da serra até à linha do horizonte por onde subiu até se juntar às outras estrelas da sua nova família, pensei eu, quando acordei e agarrei o sonho por um braço e o obriguei a escrever-se no papel e passar a viver, como todos os momentos bonitos da minha vida, na minha memória. Percebes agora porque não queria que adormecesses, disse-me a voz do pensamento, ao desvanecer-se quando tocou o despertador. Só se vêem estrelas no jardim quando a vida teima em não adormecer. É assim.

O meu pai

 

Era seguro, abrigado
parava o tempo
nos seus braços
fortes, grandes, apertados
risos, gritos, sufocados,
olhos fechados.
O cigarro, a bata branca,
a porscheta, o olhar malandro
um whisky com gelo
água de picos
entre amigos, variados
dias felizes,
descomplicados,
retratos, memórias
de uma infância
apertada
nesse que de si,
tanto e tanto me falta
o seu,
só nosso abraço.

O meu presente

 E foi assim que este este passado - histórias de outrora, personagens de épocas distantes, raízes que penetravam fundo na terra com braços da grossura de uma jiboia até às profundezas de uma História que lhe era desconhecida e alheia, afetos que cobravam forma e se lhe entrelaçavam no corpo e a seduziam até as suas entranhas se sentirem irremediavelmente condicionadas e dependente - foi raptado e arrebatado por este presente de vínculos, ligações, razões, sentidos, atrações, sensações únicas jamais sentidas de tranquila felicidade e razão de ser. Olhou em volta e viu-se, a ela, lógica do lugar, lógica do pensamento, lógica dos factos, lógica do estar e ser. Em menos de uma semana tinham-se-lhe criado ligações e raízes ou estas já existiam e tinham apenas sido regadas pela digressão emocional por aquele lugar mágico.

Mágico. Isso é um recurso para encher vazios. Vazios? Sim, ignorância, desconhecimento, para ser mais benevolente, ou falta de criatividade. O que for que mágico quer dizer, é apenas para preencher o que não sabes descrever…mas sim, chamemos-lhe “mágico” a este lugar que hoje forma parte da tua identidade emocional, ou que sentes como sendo uma parte importante da tua estrutura emocional…foi magia o que aqui aconteceu? Esta renovação, este restauro…
Foi até à janela e contemplou por uns instantes o quadro, a pintura - com o olhar de Constable - a montanha de arvoredo outonal que descia com suavidade até à planicie pintalgada de casas, uma aqui, outra ali, contra um horizonte azul pálido, esmorecido, quase sem vida, esmagado por castelos de núvens anunciadoras de uma tormenta consideravel e virando-se, respondeu-lhe:
“Magia

Amor verdadeiro

Tudo começou nessa palavra,
no jeito e momento
em que foi dita
à toa e ao acaso
numa conversa de verão,
pueril e inconsequente,
sem fundo nem forma
que nem tu nem eu começamos
nem sequer imaginámos
que iria trespassar a fronteira
que separa a razão da emoção
e alcançar, certeira, o mais fundo da nossa alma
condicionar o compasso do coração
abalar os fundamentos da nossa essência
moldar o âmago do nosso ser
e transformar os olhares, os gestos, a voz
a respiração, o pulso da razão,
todo o nosso ser, sentir e querer
na fusão de um abraço apertado,
sem principio nem fim
nem palavras ou explicação
silencioso e dilatado
só nós, isolados,
abraçados,
tudo á volta, pouco importa
só tu, só eu
só nós, criados
e o sol a nascer,
somos um só,
meu amor primeiro
para sempre
o único,
verdadeiro.

Retrato sem flor

De perto, de longe,
focado ou desfocado
no todo ou em parte
a cores ou sem elas
independentemente
das formas,
esguias, alongadas
esbeltas, marcadas
bem definidas,
macias, aveludadas,
embora sulcadas
estriadas
de anos afirmados
e vontade se ser
assim, um sorriso
ondulado
em forma de rosa
carmim desbotada
entreaberto,
pensativo, fugaz
o olhar,
destacado
um foco impetuoso
decidido e impar
que sorri a brilhar
o sol, a vida, o amor e o mar
a voz, a alma, o sentido,
uma forma de estar
de ser e se afirmar
intenso, arrojado
e certeiro,
prolongado, destemido,
sem arranjos nem rodeios,
só simples,
verdadeiro.
Porém,
o que de ti
em mim perdura
desta forma
de ser e estar
que avança
sem hesitar
e me abraça para sempre
é essa flor,
ausente.

Como as ondas do mar

A vida é uma ondulação constante, ora forte e revoltada, ora suave e plácida. Tem momentos álgidos de grande entusiasmo e luminosidade e outros escuros, gelados, desolados. Quem já alguma vez cavalgou essa onda de alegria também já se sentiu a descer sem dó nem piedade aos infernos. Épocas, ciclos, circunstâncias, fases, eras, até, tudo vem, tudo vai e volta e torna e segue, sem princípio nem fim, ou talvez, quem sabe se o que aí vem não poderá ser o regresso do que já aconteceu neste desfilar ininterrupto de momentos e ocasiões. Na minha mente, passado e futuro não existem pois ambos são parte do presente, e esse tanto faz onde está, pois onde já esteve, é onde voltará. Como as ondas do mar.

Eternidade

Bateste à porta, entraste, comeste, dormiste e ficaste. Até hoje, com um sorriso iluminado na face. Éramos miúdos, tão miúdos, nesses verões infindáveis na praia, vestidos, agasalhados de frio, a cobiçar um mar que não era para nós, pelo campo fora na bicicleta que fora de uma avó, risos, gargalhadas, feridas, corridas, de mãos dadas, as sestas prolongadas pela brisa de cambraia, chamavas-me à janela, olhar traquinas, desobediente, encaracolado, sujo de terra, sapato furado. Inauguraste os dias de glória na minha vida, estes que duram para sempre e me dilatam o coração até esses horizontes de fogo e luz diante da nossa história que se desenrola até o abraço se desvanecer e o teu sorriso, o teu terno e eterno sorriso por mim tão amado me bater de novo à porta para me levar nos braços até ao final dos tempos.
Todas as 

Os seres superiores são eles

Eu vejo uma orquestra inteira de pé a tocar em uníssono um hino à harmonia e beleza do Universo, uma nascente de águas torrencialmente cristalinas de alegria a brotar das profundezas das terras e a emergir para se juntar a este coro de vozes, que são os mosaicos caleidoscópicos de cor e luz que me rodeiam, me agasalham, me enchem a alma e me reconciliam com a vida que decorre noutros patamares existenciais, muito abaixo destas vivências que roçam o transcendente. Não sou nada de nada ante tamanha perfeição, de que me serve a inteligência e a razão bradada por tantos se jamais serei capaz de criar tanta harmonia, tanta beleza, tanta perfeição? Porque razão nos arrogamos como os seres superiores desta nossa existência coletiva quando a nossa ambição de sermos, o nosso engenho, o que erguemos nas mãos como exemplo, não vai mais além da destruição, da conquista, da aniquilação da nossa própria espécie? Porque razão não nos deixamos guiar e conduzir por estes seres que compõem este cenário de exuberância e vitalidade que se me oferece sem nada pedirem em troca, sabendo que nada tenho para dar? A luz vai iluminando as sombras e tingindo de cor o arvoredo que me rodeia. Começo o dia contagiada pela harmonia que estes sábios da Natureza me ofereceram. Jamais poderei agradecer tanta generosidade. Não merecemos. Não mereço. Os seres superiores, são eles…




Fazer anos

Ontem foi o meu dia dos anos. Já são muitos e portanto já houve muitas e variadas formas de os festejar. Já fui pequena, mínima e não dei por isso, sequer, a festa era dos pais, tios, avós. Já houve anos em que mal podia conter a excitação, na véspera não dormia, a pensar que ia ter as amigas todas em casa para uma festa, na altura considerada de arromba, à escala e dimensão dos horizontes de uns poucos anos vividos e de prioridades que cabiam nos dedos da mão. Houve outros em que a aventura estava na rua, nos desfiles de carros pelas ruas hasteando bandeiras partidárias e gritando Vitória ou Ganharemos ou simplesmente Liberdade...foram esses tempos empolgantes que adubaram o sonho, a vontade, a determinação em construir um país moderno, dinâmico, rico, próspero, de primeira divisão, os olhos postos no futuro, na vida que estava toda por viver e construir. Foram os anos na primeira pessoa, à frente da vida a comandar as minhas esperanças, a minha ambição, a minha determinação, a construir a minha própria família, a minha casa, a minha profissão, os meus compromissos sociais, políticos, cívicos. Celebrava a vida que se ia desenvolvendo à minha volta, virada para o exterior, vivida no exterior, espalhada pelo meu exterior. Hoje os meus anos regressaram a casa, à intimidade da casa, ao interior, junto da minha coluna vertebral, ali onde reside a essência, o centro da gravidade, o depósito de tudo o que foram os anos já vividos. E com os pés bem assentes nesse rochedo de sedimentos recolhidos ao longo do tempo, posso sonhar, posso navegar, posso criar, posso ousar, posso começar, partir, fazer, querer, ir, ir para onde a alma e o pensamento me quiserem levar, porque ir fazendo anos é isso mesmo, é lançar pilares na terra, cada vez mais altos, mais sólidos e mais resistentes, para poder voar para cada vez mais longe e mais alto, até ao dia em que esse vôo não terá regresso porque me terei dissolvido no ar. Que beleza! Obrigada a todos que me acompanharam até hoje e se lembraram deste dia, 26 de abril, ontem do ano da Graça de 2024. Beijo grande a todos e um abraço de obrigadas!

Sic transit vitae

Gosto destes dias de abril, de chuvas irregulares e abertas que já trazem nelas o apetite do verão, com luz até mais tarde e mais cedo pelo acordar da manhãzinha. Gosto do alternar entre a escuridão mais sombria e ameaçadora e o brilho intenso que irradiam as cores que crescem aqui e ali, nas rosas, nas estrelícias, nas glicínias, nos jarros selvagens que habitam o jardim. Gosto do pingar, gota a gota, que cai do beiral do telhado, e do calor que abraça o corpo nos momentos de sol. Gosto de sentir que o inverno já nos deixou e de que o verão está ali, ao virar da esquina, quando menos esperarmos. Gosto das fases intercaladas entre dois extremos, entre uma planície que nos expõe e uma floresta que nos protege, entre as emoções à flor da pele e as emoções aquém de um olhar traidor. Gosto de oscilar entre a paleta de cores esbatidas e aguerridas, o branco silencioso e o laranja exuberante, a água e o fogo, a terra perfumada de humidade e o fruto maduro e doce. Gosto de caminhar e de ver ao longe, no final da estrada de terra ladeada de plátanos e agapantos brancos e lilases, selvagens e espontâneos, a silhueta elegante da casa vestida de jasmim em flor e de parar o tempo nessa sensação de que a vida é uma transição para um momento que está ainda para acontecer e de que nas minhas costas, para trás fica o que um dia, quem sabe quando, voltará a acontecer...gosto deste caminhar que se chama presente, feito do compromisso entre extremos que se tocam. Agora saiu o sol que ofusca, há pouco chovia, sem piedade.

Um dia serei planta

 Cada vez tenho mais a certeza de que as respostas às grandes questões ligadas à existência se encontram entre os verdes, os amarelos, encarnados das flores, na fineza do desenho das folhas do jacarandá, nas raízes da ameixoeira e do azevinho que se cruzam debaixo de terra e no polen que viaja a uma velocidade estonteante entre as ramas da laranjeira. Existe na Natureza, um código, algoritmos, sequências de Fibonacci e uma topologia matemáticamente relevante que nos indica como resolver os grandes mistérios, as grandes questões, as grandes incógnitas. Adoro ver como são sábias, as plantas, como se falam, convivem, se ajudam, se aniquilam e sobrevivem, felizes. Temos tudo a aprender com estes seres vivos que, não por não falarem, não terem olhos nem boca nem ouvirem, não terem feito um curso superior e não twitarem cada segundo ou não espetarem facas envenenadas nos colegas de trabalho, por hipótese, são menos protagonistas desta vida. Sento-me no jardim, longe da mesquinhez e velhacaria humanas, observo, oiço, com atenção e humildade e reconforta-me saber que um dia, quando for pó, irei colaborar para que estas plantas continuem a ser donas do nosso Universo e detentoras do segredo da nossa existência. Um dia serei planta, também e animarei o jardim dos meus descendentes. Isso reconforta-me. Serei parte de uma destas rosas ou de uma das camélias deste jardim. Serei tão feliz como agora, a esta hora do sol por, do lado de cá da existência. 




O despertar dos Deuses

Acorda, anda, levanta-te e vem assistir ao esperguiçar dos Deuses e das Deusas e de toda a Corte que habita as nossas redondezas na Via Láctea. Despacha-te que vais perder o momento em que Vénus, Marte e Júpiter e tantos outros que conheço mas me esqueci dos nomes, tal é a excitação e a correria, desfilam pela passadeira nobre da Natureza rendida a seus pés e nos vão cobrindo de luz e cor e calor, não faças barulho, escondemo-nos por trás daquela pequena selva de jarros e olha. Em silêncio marcial, porque nos faltam as palavras, se nos enfraqueceu o fôlego e se acelerou o bater da alma suspensa, é isto o sagrado, o princípio e de certeza o final quando esta luz se nos apagar para sempre e podermos finalmente juntar o céu à terra, a rosa ao lírio, a tua mão à minha, e seremos só um, infinito. pensei. Encolhi-me. O sopro delicado do Deus do vento passou por nós e desfez o encanto do início de mais uma manhã pelos lado do Monte da Lua. Valeu a pena?, perguntei e o sorriso aberto de par em par do teu olhar não deu margem para dúvida.





O Tudo tão óbvio...

É desta forma que "a Comunidade" onde vivo me acolhe para o dia de hoje e não tenho forma de lhe agradecer senão através desta minha linguagem feita tanto de letras e palavras como de gestos e silêncios que não sei se lhe chega a ela, Comunidade e é por ela compreendida...pobre de mim que só sei comunicar com seres como eu e que penso e ajo como se o resto da Humanidade me tivesse que compreender e aceitar esta minha poesia tão rudimentar e limitada...todos os dias me é oferecida uma roupagem tecida de cor, som, cheiro e tacto esplendorosos que faz mais por mim do que a minha própria utopia e no entanto ...não sei sequer agradecer quanto mais sentir que sou parte desta Comunidade que ela sim, sabe comunicar com os outros seres - vivos e inertes - que a compõem. Sou o único ser que ainda é externo, forasteiro, alheio a esta harmonia que usa formas de comunicar tão mais complexas e contudo tão mais simples e eficazes do que a minha. Olho para mim e para os meus e só vejo individualismo, ganância, controlo, poder, depradação, caos e aniquilamento dos próprios e dos outros e algo me empurra para esta outra dimensão onde a Comunidade são todos, é de todos e para todos. O dia nasce desta maneira e com esta generosidade para todos e no entanto...não sei bem como agradecer nem conviver e menos habitar ou sentir-me parte deste todo comum, a Comunidade que afinal é...o Tudo e que é tão óbvio?




Quando o sol se despede

Quando o sol se despede e vai para o outro lado da terra, deixa-nos espelhado no céu as cores da paixão. Intensas, cálidas, profundas, arrebatadoras. Que apelam a fantasias secretas, passadas ou futuras, cada um sabe de si. À hora do sol por, assim, tudo é possível, tudo pode acontecer, quem nunca o sentiu?




A rosa da vida

Passam os anos, as estações, os dias e os humores. As arrelias, as querelas e tantos dissabores. Brilhe o sol ou adormeça a luz na névoa que desce ao fim da tarde pela ladeira em frente. Procurem os meus olhos o imenso horizonte para além da linha azul do mar e sonhem muito, às vezes tanto, em zarpar, a verdade é que o tempo nunca me deixa partir sem deixar esta ou outra rosa do jardim de casa a fazer companhia, dar cor e alegrar este pequeno altar onde o amor que tenho gosta de habitar. São os que já não estando ainda moldam os meus dias, tingem de saudade o brilho molhado do olhar, arrancam memórias vivas, tão claras e nítidas que lhes oiço as gargalhadas, adivinho os pensamentos, sinto o cheiro e abro os braços para os sentir mais junto de mim. Vidas que fazem a minha vida, inspiram os sentimentos, com que escrevo poesia.




A mãe que caiu do céu, no dia 13 de junho e ficou Maria..do Céu, a Micéu.


Chamava-se Maria do Céu. Para ela uma chaga que a acompanhou a vida toda e que a inibia e que foi em parte responsável pela sua maneira de estar, com os outros. "Caíra do céu aos trambolhões", já não era esperada, a idade "entradota" da minha avó Amélia fechava as portas a mais filhos, mas veio. Anunciada precocemente por um velhinho de barba branca e camisa imaculada que passou diante da porta de casa e
quiz falar com a avó, para lhe anunciar a boa nova. Foi despachado e nunca mais foi visto, aliás, nunca tinha sido visto na zona por ninguém. Era Mirandela, Trás-os-Montes, anos 30. Teria sido fácil encontrá-lo. Quando a boa nova se concretizou, foi uma aflição. Foi procurado por todo o lado mas nada...Do Céu aos trambolhões era uma piada mas o nome ficou, para grande desgraça da minha mãe, pois não tinha escapatória.

Ficou Micéu, era ela, única. A minha mãe. Digo isto e o som reverbera até ao início da minha vida e estende-se para além desse ponto no tempo, nas fotografias que eram mostradas e comentadas regularmente, a Micéuzinha pequena, de tranças douradas, lindas, fortes, cheias de vida. Uma das tranças, cortada contra a sua vontade chegou até nós, um tesouro perdido, chorado e venerado. A Micéu casada, uma noiva esbelta, sincera, envergonhada mas esplêndida, numa vida que começou e se desenrolou como um conto de fadas até aos dias em que conheceu o inferno, a dor, a desilusão, o empenho e o dever. Uma mulher de armas, uma mulher de aço e arestas e de pétalas frágeis e e orvalhos matinais...
Era hoje o seu dia. 13 de junho, dia de Santo António, com quem se identificava, dia de festa embora não gostasse de fazer anos. Era muito ela, dona de si, do seu nariz, das suas angústias e alegrias, dos seus empenhos e também das suas limitações. Escolheu a vida que se escolhia na época mas podia ter escolhido outra. Viveu antes do tempo em que as mulheres portuguesas puderam concretizar os seus sonhos e a minha mãe tinha muitos, para ela e para a família mais chegada, que adorava sem ser expansiva, sendo autoritária e não admitir excessos nem faltas de disciplina. Quando queria era doce, quando não, o beliscão e o olhar aberto, arregalado, o estalo da falta de paciência estavam-lhe na ponta do feitio herdado mais do pai, um clássico germânico, do que da mãe, uma boémia cheia de vida e alegria.
Cantava, lia em voz alta, imitava outros, ria-se, gostava da anedota fresca e pintava. Fumava com estilo e tinha raça, era um desses cavalos de porte altivo e crina farta, ossudo, estilizado, pescoço alto, trote elegante e volteio com graça. Vestia-se bem, caprichava, era adepta da Maria Luisa Bacelar, discreta mas com brilho próprio. Tinha uma sensibilidade exacerbada, adorava ler, leu, lia muito, a vida toda, poesia, declamava, de pequena era atração, subia em cima da mesa e declamava, teatralmente poemas de todos os tipos, autores e línguas. Amava José Régio, Cesário Verde, António Nobre, tanto quanto detestava Fernando Pessoa, um dos seus ódios de estimação. Tinha compositores favoritos, deliciava-se com César Frank, Mozart, Beethoven...
Entristece-me hoje, dia de Santo António que ela não esteja. Sinto um nó na garganta, grande, duro, que custa a desfazer quando penso em tudo o que teria hoje para partilhar com ela, a começar pelos encontrões que nos fomos dando ao longo da vida, muito devido a que tinha outros planos para mim do que aqueles que segui, também dona do meu nariz, como ela. Passando pelas cumplicidades que só existem entre filha e mãe até àquelas áreas em que sinto que herdei tanto, tanto do que ela foi, sentiu, desejou e viveu. Entristece-me muito não poder dizer-lhe o quanto me sinto perto dela, daquela sua aparente solidão sonhadora e dos seus pensativos e introvertidos vôos de pássaro de asas delicadas e robustas pelos céus, em direção ao horizonte, onde o sol se põe. O céu foi de onde caiu aos trambolhões, o céu era o seu limite, chamava-se Maria do Céu, abreviada de Micéu. Era hoje o seu dia, um beijo para si, mãe, aqui no meu coração!

Para a prima Maria Ataide, uma fotografia com os óculos tão anos 60.

Pegadas que ficam

“As únicas pegadas que ficam calcadas na memória são as do amor e tu imprimiste em mim uma esteira delas”, disse-me e toda a nossa vida de distâncias silenciosas, frias e profundamente revoltantes se esvaíram como castelos de cartas ao vento e do vazio do nada que sempre existira irrompia, pela magia das palavras, uma vida inesperada, chocante, desconcertante, que dizer, pensar, imaginar, o que viria a seguir?

Cada um terá a sua história e se for de amor, ficará calcada na memória, para sempre. Não é assim?

Pergunte-se à vida, quando ela bater à porta

Há momentos em que a vida vem ter connosco para conversar sobre temas que não têm muito a ver com a agenda da semana e queiramos ou não, há que deixá-la entrar em casa, sentá-la onde se sinta confortável e dedicar-lhe o tempo que for necessário até que diga: "Missão cumprida". Não sabemos bem quando vem, as vezes que isso me aconteceu, algumas, suspeitava que apareceria, mais dia menos dia, outras ela apresentou-se, sem convite, sem ser esperada, do nada e instalou-se sem pressa nenhuma de me deixar entregue a mim própria. Cão de fila...

Tenho-a por uma pessoa inteligente, culta, caráter assente em vigas de sólidos princípios e armadura de valores consistente, resistente às avarias do tempo, às vicissitudes e contextos, entenda-se. Não abre logo o jogo, é reservada, atenta, observadora e por vezes joga comigo um poker facial que me desconcerta e me deixa nervosa, a mim, mais do género de não ter grande paciência para jogadas preparadas cheias de fintas e passinhos de dança curtos e rocambolescos, por favor vai direta ao assunto, já não somos crianças e posso bem ver o que te vai na cabeça e onde queres chegar e o que pretendes realmente, por isso, despeja e não me faças perder o tempo.
Vem com o intuito de me questionar, pôr à prova, alertar, em modo prevenção e, ao que parece, com a missão, diz ela, convencida de que assim é, de me ajudar, pois ao que parece, o perigo está em mim, na minha pessoa, em determinados atributos do meu "sistema operativo", em algumas funcionalidades e "automaticidades" que derivam em consequências, aparentemente, negativas para mim. "Sabe, (a vida trata-me por você, é engraçado, mas eu prefiro manter este escudo que nos protege dos perdigotos da familiaridade em excesso) nem sempre somos o melhor conselheiro de nós próprios, e no seu caso, tem acontecido que deixá-la nas suas únicas mãos, não tem sido o melhor para si."
E obriga-me a rever, a desconstruir, a recomeçar e vai uma e vão duas e as vezes que forem precisas de análise, balanço, os prós, os contras, o direito e o avesso, os cantos todos, as re-entrâncias, os esconderijos, alçapões e por trás das portas secretas, sem descanso, sem pausa, a pão e água até ela concluir que não fui atraiçoada por mim, não sou minha refém, não me silenciei nem me substituí a mim própria e não sou uma impostora qualquer que veio encenar um papel que ela considera não dever ser o meu, o que me corresponde, o que ela imprimiu na palma da minha mão, no início dos tempos...
É a vida a passar-nos contas, de lápis afiado atrás da orelha e bloco de notas com linhas, severa sem dúvida, mas também generosa...como uma avó e a verdade é que se ela não existisse e esta sua missão não fosse levada a cabo, quando necessário, eu sentir-me-ía mais só, mais perdida, mais à mercê daquilo que me faz perder o equilibrio, a estabilidade e me desvia do propósito que me trouxe aqui. Sei bem qual é o meu e cada um saberá qual o seu. Se não, perguntem à vida, quando ela vos bater à porta.

Ante a tormenta de verdes, o melro

Só, o melro, atento à cascata exuberante de verde que desaba do alto da montanha, indiferente à chuva que lhe ensopa o corpo cor de carvão. É pequeno e franzino mas não tem medo de lançar-se nesta imensidão que o supera.




Romantismo

Para a minha amiga Joana Freudenthal, amante, como eu, desta árvore que enche os espaços com uma beleza tão frágil, tão delicada, tão elegante. As suas formas, cores e cheiro fazem lembrar as salas de casa das avós, repletas de objetos de tartaruga, prata rendada, ouro fino, cortinas de cambraia e almofadas de sedas gastas, porcelanas finas, azuis, rosas, verdes, com flores, dragões, figuras do Oriente de há séculos atrás, salvas enegrecidas e snobs sobre contadores de marfim, cadeirões de veludos profundos e madeiras escuras e robustas. Paisagens que evocam amores dedicados, reuniões familiares ruidosas, tertúlias de dobrar de século, almoços que se prolongavam pelo entardecer e deixavam as salas enevoadas de fumo, lareiras a crepitar de aconchego e lumes bailarinos, criançada de vestidos vaporosos e joelhos feridos de quedas ousadas entre gargalhadas cristalinas e choros convulsivos, livros caídos no regaço com um sorriso enfeitiçado pelo sonho e o jacarandá no jardim, ao vento, à chuva, ao sol e na sombra dos dias, a refletir nos seus cachos airosos e bojudos o lilás dos tempos que nunca passam, nunca se esquecem e nunca se deixam de amar. Romantismo. O sabor mais gostoso da vida.







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