Chamava-se Maria do Céu. Para ela uma chaga que a acompanhou a vida toda e que a inibia e que foi em parte responsável pela sua maneira de estar, com os outros. "Caíra do céu aos trambolhões", já não era esperada, a idade "entradota" da minha avó Amélia fechava as portas a mais filhos, mas veio. Anunciada precocemente por um velhinho de barba branca e camisa imaculada que passou diante da porta de casa e quiz falar com a avó, para lhe anunciar a boa nova. Foi despachado e nunca mais foi visto, aliás, nunca tinha sido visto na zona por ninguém. Era Mirandela, Trás-os-Montes, anos 30. Teria sido fácil encontrá-lo. Quando a boa nova se concretizou, foi uma aflição. Foi procurado por todo o lado mas nada...Do Céu aos trambolhões era uma piada mas o nome ficou, para grande desgraça da minha mãe, pois não tinha escapatória. 
E por isso vou a correr escrever. Para que as ideias escorram depressa para o papel e dêem espaço às novas que se apressam a tomar forma. Escrever é forrar as paredes interiores de ideias arrumadas.
terça-feira, 25 de junho de 2024
A mãe que caiu do céu, no dia 13 de junho e ficou Maria..do Céu, a Micéu.
Ficou Micéu, era ela, única. A minha mãe. Digo isto e o som reverbera até ao início da minha vida e estende-se para além desse ponto no tempo, nas fotografias que eram mostradas e comentadas regularmente, a Micéuzinha pequena, de tranças douradas, lindas, fortes, cheias de vida. Uma das tranças, cortada contra a sua vontade chegou até nós, um tesouro perdido, chorado e venerado. A Micéu casada, uma noiva esbelta, sincera, envergonhada mas esplêndida, numa vida que começou e se desenrolou como um conto de fadas até aos dias em que conheceu o inferno, a dor, a desilusão, o empenho e o dever. Uma mulher de armas, uma mulher de aço e arestas e de pétalas frágeis e e orvalhos matinais...
Era hoje o seu dia. 13 de junho, dia de Santo António, com quem se identificava, dia de festa embora não gostasse de fazer anos. Era muito ela, dona de si, do seu nariz, das suas angústias e alegrias, dos seus empenhos e também das suas limitações. Escolheu a vida que se escolhia na época mas podia ter escolhido outra. Viveu antes do tempo em que as mulheres portuguesas puderam concretizar os seus sonhos e a minha mãe tinha muitos, para ela e para a família mais chegada, que adorava sem ser expansiva, sendo autoritária e não admitir excessos nem faltas de disciplina. Quando queria era doce, quando não, o beliscão e o olhar aberto, arregalado, o estalo da falta de paciência estavam-lhe na ponta do feitio herdado mais do pai, um clássico germânico, do que da mãe, uma boémia cheia de vida e alegria. 
Cantava, lia em voz alta, imitava outros, ria-se, gostava da anedota fresca e pintava. Fumava com estilo e tinha raça, era um desses cavalos de porte altivo e crina farta, ossudo, estilizado, pescoço alto, trote elegante e volteio com graça. Vestia-se bem, caprichava, era adepta da Maria Luisa Bacelar, discreta mas com brilho próprio. Tinha uma sensibilidade exacerbada, adorava ler, leu, lia muito, a vida toda, poesia, declamava, de pequena era atração, subia em cima da mesa e declamava, teatralmente poemas de todos os tipos, autores e línguas. Amava José Régio, Cesário Verde, António Nobre, tanto quanto detestava Fernando Pessoa, um dos seus ódios de estimação. Tinha compositores favoritos, deliciava-se com César Frank, Mozart, Beethoven...
Entristece-me hoje, dia de Santo António que ela não esteja. Sinto um nó na garganta, grande, duro, que custa a desfazer quando penso em tudo o que teria hoje para partilhar com ela, a começar pelos encontrões que nos fomos dando ao longo da vida, muito devido a que tinha outros planos para mim do que aqueles que segui, também dona do meu nariz, como ela. Passando pelas cumplicidades que só existem entre filha e mãe até àquelas áreas em que sinto que herdei tanto, tanto do que ela foi, sentiu, desejou e viveu. Entristece-me muito não poder dizer-lhe o quanto me sinto perto dela, daquela sua aparente solidão sonhadora e dos seus pensativos e introvertidos vôos de pássaro de asas delicadas e robustas pelos céus, em direção ao horizonte, onde o sol se põe. O céu foi de onde caiu aos trambolhões, o céu era o seu limite, chamava-se Maria do Céu, abreviada de Micéu. Era hoje o seu dia, um beijo para si, mãe, aqui no meu coração!
Para a prima Maria Ataide, uma fotografia com os óculos tão anos 60.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)

 
 
Sem comentários:
Enviar um comentário