E por isso vou a correr escrever. Para que as ideias escorram depressa para o papel e dêem espaço às novas que se apressam a tomar forma. Escrever é forrar as paredes interiores de ideias arrumadas.
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Dias que são só dias
Viva a Ciência!
A fotografia da janela da sala de minha casa, à primeira vista, pode parecer que nada tem a ver com a ressonância magnética que ontem fiz, mas tem. O que se passa atrás da janela iluminada neste amanhecer ainda brumoso sintrense, só pode ser desvendado se me aproximar, encostar a cara à vidraça e espreitar. Mover-me-á o grau de curiosidade que me animar, claro. A luz, intensamente amarelada e quente, num cenário tão pálido e deslavado é suficientemente misteriosa para excitar a minha imaginação e é isso que me leva a aproximar-me, quero saber...e foi este pensamento que me entreteve nos longos 25 minutos que durou a ressonância magnética a que me submeti ontem. E enquanto o barulho ensurdecedor que resultava da vibração do íman gigantesco que rodeava o meu corpo enchia o meu entorno, o meu pensamento estava com os quarks dos protões dos meus átomos de hidrogénio, os veículos que iriam permitir aos técnicos e médicos ver o que se passa por trás da minha vidraça iluminada, que mistério está guardado nos tecidos e estruturas que formam o meu interior. Tentei sentir como esses meus simpáticos e prestáveis quarks se alinhavam ao capricho dos impulsos magnéticos que a máquina ia produzindo, mas acho que foi apenas um wishfull thinking pois, para nosso grande desespero, essas nossas estruturas subatómicas não nos obedecem, são rebeldes aos nossos caprichos, que não às ordens das máquinas infernais, hélàs. Tive pena que terminasse o exame pois é difícil podermos abstrair dos ruídos caóticos e dispersivos que são o nosso dia-à-dia e focalizarmo-nos nos mistérios que habitam as profundezas da nossa existência, no âmago do nosso ser, o que se esconde nos tecidos, nas células, no infinitamente pequeno...Ali, quieta, deitada, protegida por um poderoso campo magnético e isolada do mundo por um barulho ensurdecedor, consegui concentrar-me e conviver com o mistério que se esconde por trás, dentro dessa janela iluminada. Graças à RM. Viva a ciência!
11 março 2025
Jardim da metafísica
O meu jardim está feito de essências subtis e em permanente mutação. De formas, de cor, de sentido. Em função da brisa, da luz, do ambiente e do ar do tempo. Do silêncio místico que rodeia o desfolhar da alvorada. Saio, antes que a manhã me roube este mistério precioso, em busca da metafísica que paira no ondular da bruma rasteira entre os verdes húmidos e escorregadios e no rasto surdo do súbito esvoaçar assustado dos habitantes da noite. É o meu sangue e a minha seiva que escorrem pelas veias e capilares desta confusão de seres que brotam do chão, das pedras, das árvores, das trepadeiras sem descanso e no gorgolhar sem cessar da chuva da noite anterior. Uma voracidade lírica incontinente. A obrigada diálise da alma, pura questão de sobrevivência.
18 março 2025
Banda sonora de mim
Este disco forjou uma época da minha vida, foi a melodia que envolveu a minha vida estudantil, na Escola alemã, os exames, o estudo até altas horas, a ansiedade, o cansaço, o final de uma fase e a visão do início de uma vida profissional que me levaria à independência…mas não só. Passagens sublimes deste disco estão intimamente ligadas aos dias em que o meu pai foi operado às coronárias na Suíça, a possibilidade de ele morrer nessa operação e de nunca mais o poder ver…o seu significado e peso na minha vida, o afeto, a amizade, o amor que lhe tinha e que de repente se materializaram na minha consciência, assim, sem mais, ao som dos acordes do 1. “andamento” do Concerto de Colónia. Mas não só. Grande parte deste disco ainda é hoje a banda sonora de um determinado estado de espírito onde volto sempre que preciso, tenho necessidade ou me apetece emocionar-me, lançar no ar e deixar voar, livres, emoções e sentimentos que dão sentido à minha existência, dão consistência e razão de ser à minha maneira de ser, de estar, de sentir e agir. É como se esta música fizesse parte do meu sistema operativo, fizesse parte da engrenagem que me mantém viva e me define enquanto ser. Cada vez que oiço esta música (procuro que não sejam muitas vezes) mergulho na escuridão da sala grande de mim e vejo-me por dentro, os quadros da minha vida, os personagens, a alegria esfusiante de alguns momentos e o seu reverso, os lados mais lúgubres e rasteiros, a lama onde escorreguei nas fases menos brilhantes da minha vida…tudo isto ao som dos acordes da melodia deste concerto improvisado pelo génio do jazz que é Keith Jarrett…oiçam, de preferência à noite, sós, em silêncio e busca da paz necessária para se verem e sentirem. E encontrarem.
21 março 2025
Inteligência artificial - Ignorância artificial - Insónia artificial (A entropia aumenta sempre, é a segunda lei da termodinâmica...)
Acordei com um barulho a bater furiosamente à minha janela e a gritar por mim, era a chuva, pois, certamente, é assim que ela bate ultimamente. Ando com o sono leve, o nome do herói da minha próxima novela impede o sono profundo, uma maçada, isso sim, será este, será aquele, este não, certamente e aquele não é nome que se dê a ninguém e lá acendo a luz, para desanuviar os neurónios e ponho-me a fazer a proposta de roteiro pelo Porto de três dias de férias que uns amigos vão passar à Invicta. Um pedido que atendo sempre, por amizade, para que os amigos não passem por turistas, o pior que um ser humano pode ser, ultimamente, quando tenta sair de casa para conhecer mundos. E decidi, a estas horas de pouca energia, de recorrer à IA para ver se realmente era útil para, em menos de dez segundos, organizar um roteiro turístico, como me disseram que fazia. E certifico o seguinte:
1. Em dez segundos a IA apresentou-me um roteiro que não se apresenta a nenhum ser humano, talvez a outros colegas e amigos IA lá onde vive: desde erros de ortografia básicos, a indicação de restaurantes que não eram do Porto e ao esquecimento de atrações como possam ser a Casa da Música, a Torre dos Clérigos ou a Foz do Douro...de tudo um pouco.
2. Surpreendida com tanta "I" de Ignorância, voltei a tentar. Até fui simpática e perguntei se não se tinha esquecido daquelas atrações básicas do Porto e a ou o, não sei, agradeceu-me pela lembrança e incluiu-as na dita agenda. Quanto ao restaurante que não era no Porto, mas sim nos confins do Alto Alentejo, desculpou-se pelo erro grosseiro, mas não me deu alternativa. E fez uma nova proposta.
3. Na segunda proposta, os meus amigos iriam fazer um rally paper pela cidade do Porto em ziguezague, como aquelas sugestões do Waze que nos faz andar 20 quilómetros de carro para ir de A a B porque não percebeu que queríamos ir a pé...um desatino e um desnorteamento de percursos e trajetos que me deixou pior do que estava com a primeira proposta. Irritada, fiz-lhe notar que ir à Sé Catedral, depois à Foz e voltar aos Clérigos e no dia seguir à Livraria Lello, era um absurdo e uma asneira e voltou a pedir-me desculpa, educadamente, isso sim e fez uma terceira proposta mais disparatada ainda que as anteriores, baralha e volta a dar, desta vez fiel à segunda lei da termodinâmica que diz que o mundo caminha para uma desordem e um caos completos e assim foi.
4. Às 4h30 da manhã, quando a chuva parou de bater-me à janela e a noite amainou, desisti de dar corda à Ignorância artificial. O Porto fica para amanhã, farei o que faço sempre, sem perder tempo a consultar mecanismos que escrevem burrices e estupidezes básicas à velocidade da luz.
E volto à questão da identidade do meu herói. Tira-me o sono, é verdade, mas as fontes onde vou buscar ideias e construir linhagens são aqueles calhamaços de sempre onde o que se escreveu resultou de anos de estudo, de consulta de milhares de fontes e de uma reflexão vagarosa, mas cuidada. E fico em paz. Porque dar uma identidade a alguém, ainda que fictícia e fictício, tira o sono, leva tempo, não é para hoje, não sei para quando será, mas quando for, sei que fará sentido e não será fruto da ignorância artificial.
5. Isto da Inteligência artificial que é certamente uma ignorância artificial, mais do que tudo, acabou por ser uma miserável insónia artificial...agora já tenho de me levantar...
Salcedos há tantos aqui na urbe...
E eis senão quando, o grotesco do Salcedo, ao entrar naquela sala de uma elegante mas rebuscada harmonia de cores e formas e deparar-se com Coco, é a Chanel!, não resiste e apoiando no braço de Carlos a sua súbita e afogueada comoção, solta, espetacular, no que pensava ser o francês, o seu sabujo e deslumbrado: "Madame, que vous êtes chic, à valoir!"
P.S. Fotografia gentilmente cedida por Mariana Pimentel.
18 de abril 2025
Em dia de sexta-feira santa
Lá fora chovem, intermitentes, rajadas frias e desagradáveis que varrem, em turbilhão, as ruas de ramos e folhagens arrancados às árvores castigadas, vergadas, despidas da tímida e precipitada primavera por um inverno teimoso e prepotente que nos gela e tolhe o corpo embrulhado nas lãs espessas que já queríamos ter guardado até para o ano, o braseiro aceso, a água a ferver para mais um chá, a Natureza a escorrer sem cessar a paleta que foi risonha e pujante de verdes por ela tecidos com vagar e paciência, nessa cor deslavada e tristonha que é a da chuva em dia de sexta-feira santa...
Uma alma em cada esquina
Passeando pelos caminhos e lugares da minha vila. O encanto está no que se vê e no que apenas se intui ou se imagina e sonha que poderá acontecer ou existir depois da curva da estrada ladeada de muros cobertos de uma penugem de musgo e fetos, no final da alameda conquistada pela mata por trás de um portão enferrujado pelos anos e abandono, ou no cimo da escadaria de calçada tosca e gasta, onde nos leva? Vou andando, “flanando”, quem viverá nestas casas, castigadas pelo clima e agraciadas com o pedigree dos anos, todas dentro da mesma linha, romântica e paro, ao vislumbrar, no alto da serra, o palácio encantado que inspira e acende tantos amores, proibidos ou não, de reis e rainhas…quem me dera, suspiro, não tenho remédio. Na minha vila, a beleza conjuga-se em todas as formas verbais de todos os verbos da nossa Língua. É uma melodia redonda, que ora exalta ora apazigua, ora enleva ora surpreende, pela sinceridade dos seus propósitos, pela doçura dos seus contornos, a frescura das suas formas. Inspiro o cheiro a cedro e eucalipto até ao fundo dos pulmões que abrem com um estrondo regenerador e deixam à vista a minha alma, virgem de toda esta maravilha que me rodeia, sequiosa da sua frescura perfumada e à vida dos sonhos, romances e fantasias que se escondem por trás da primeira vista. É assim a minha vila. Um estado de alma que muda a cada esquina.
9 fevereiro 2025
É sempre o mesmo cenário, e no entanto…
No entanto. É isso mesmo. Eu vivo no mundo do “no entanto”. Escrevo porque acredito no “contudo” e sonho, muito porque sou fã do “porém”. A minha vida toda tem sido a procura deste Universo regenerador que habita nas paragens que se situam sob a proteção feroz destas conjunções adversativas, verdadeiras sentinelas e seguranças deste porto-de-abrigo onde regresso sempre, para recuperar, para renascer e crescer, rumo à sabedoria. E o cenário da minha existência não precisa de mudar, aliás, geralmente não me movo muito para além destas paragens do meu dia-a-dia, e, lá está, no entanto, a minha alma, guiada pelos meus sentidos, essa sim, vagueia, viaja, celebra, embeleza-se, refina-se, deleita-se, chora, ri às gargalhadas, cultiva-se, aprende, disfruta, partilha, com humildade e abertura. Neste abrigo do tamanho da existência aprendo a ser estado de alma, um sentir tão sensível como uma pluma que baloiça na brisa delicada de um entardecer lento quase impercetível. Ou num amanhecer de bochechas rosadas entre a palidez da pele deste universo que se esconde por trás do “no entanto”. Porque é aqui, neste cenário de sempre, protegida pelas conjunções regenerativas, onde o estado de alma, cada dia, todos os dias, sempre, recupera a capacidade de olhar para a realidade sem desfalecer, sem se corromper, sem claudicar e sem se dissolver. Nem preciso de respirar fundo e de fazer grandes reflexões. A linguagem da alma é outra, alimenta-se dos sentidos. E recria-se, continuamente, no mesmo cenário de sempre, porque o seu universo está para lá do “porém” da realidade.
6 fevereiro 2025
Adoro falar com o meu Universo
Já alguma vez falaram com o vosso Universo? Atenção, que o Universo não são as galáxias distantes ou as Vias Lácteas onde a Terra e muitos outros planetas e estrelas habitam. Não! O universo é o espaço-tempo onde habitas, o hoje rodeado de tudo aquilo que te cabe no cérebro, seja na parte mais racional e fria como na mais imprevisível e artística. E cada um escolhe o Universo que mais tem a ver consigo, uma biblioteca repleta de livros, um mar plano a perder de vista, uma montanha coberta de neve, uma paisagem urbana cansada e envelhecida, uma planície de sossego ondulado, o que for que for a vossa circunstância vos oferecer, e nela que deve nascer e florescer um diálogo sobre a tua vida, a tua circunstância, o teu futuro, o teu presente...é importante poder falar, dialogar com o Universo que nos rodeia, estabelecer ligações que nos ajudem a compreender melhor essa mesma circunstância e a extrair dela aquilo que nos pode fazer mais feliz. O Universo, do que precisa é de pessoas felizes, e é isso que nos diz quando o escutamos com atenção e cuidado. Foi o que fiz hoje ao final do dia, quando o sol desceu sobre as colinas e a lua tomou o comando do céu. Sentar-me e falar com ele. Explicar-lhe o que espero da vida, o que espero do tempo, o que espero dele, Universo, que me conhece desde que existe e me acompanhará até eu fechar os olhos e deixar este mundo. E foi isso que fiz, esta noite em que senti que se abria uma nova etapa da minha vida e precisava de perguntar ao Universo se estava de acordo em que deixasse para trás esta mochila que levei aos ombros nos últimos dez anos e enveredasse pelo caminho que surgiu, tímido e balbuciante, à minha frente, ao virar da esquina desta minha última circunstância.
E o Universo disse-me que já era hora de virar a página da década passada e de iniciar um novo capítulo da minha existência e é o que faço aqui, agora, depois desta conversa que tive com o meu Universo: iniciar um novo Capítulo da minha História. Espero que seja produtivo, justo, recompensador, um colo materno onde posso arranjar a energia para descolar e onde posso regressar se tudo correr mal.
Adoro falar com o meu Universo!
3 fevereiro 2025
Tradições com o algoritmo certo
Mais um almoço delicioso e deliciosamente tranquilo em Biarritz das Maçãs no único e mais bonito dia de sol esplendoroso sob um teto altíssimo feito de céu azul a perder de vista, esfarrapado, aqui e ali, com restos de nuvens plácidas e parcimoniosas e já em modo de fim de semana. Vestígios na praia vizinha da nossa Biarritz, da fúria com que se enfrentaram os Deuses Neptuno e Júpiter na semana passada, um revolvendo e agitando o fundo do mar com o seu tridente, para que as ondas galgassem a terra até ao céu e o outro fulminando-o com a sua fúria feérica e ensurdecedora. Resultado: Areia esturricada e rochas à superfície e uma praia reduzida à sua mínima expressão. E com estes almoços regulares de final do mês, onde almoçamos mesmo e partilhamos genuinamente a mesa, à beira do Oceano, na Biarritz podre de chique e cheia de classe, patrocinados por Júpiter e Neptuno, se vai construindo uma tradição. Coisas boas da vida. Que não são para todos pois há que alvejar com o algoritmo certo e certeiro e isso…
31 janeiro 2025
A vista da minha janela
A vista da minha janela é um rendilhado de silhuetas delicadas e finas que recortam a suavidade pálida e límpida do céu de inverno. Oiço uma guitarra a ser dedilhada com perícia e paixão escalas que sobem e descem e desenham na minha ávida e incansável fantasia a mais bela história de amor que me é oferecida à alma quando levanto o olhar e o fixo no horizonte. Através da minha janela.
28 janeiro 2025
Vidas imaginadas
Dizem que recordar é viver. E é verdade. A vida, no presente, está cheia do nosso passado, são vezes sem conta, em que se abrem túneis de passagem a épocas remotas da nossa história que nos levam a viver episódios como se realmente estivessem a acontecer hoje. Com sons, cheiros, cores e sensações conjugadas no presente. Mas não só de recordações reais, que aconteceram no passado, vive a vida do presente. Ainda que não tenha vivido algumas das histórias do passado, posso reconstruí-las a partir de coisas que chegaram até hoje, às minhas mãos e que falam por si e me contam histórias que não sei se são verdade, mas que participam ativamente no meu presente. Ontem choquei com estas canetas, esquecidas em estojos que habitavam o fundo de uma gaveta comprida e escura. Sabia que as tinha, fiquei com imensa "tralha" que vivia nas gavetas das cómodas da minha avó que tinha pertencido ao meu avô João, pai do meu pai. Eu sabia que ele era um grande apreciador de material de papelaria, de qualidade, naqueles gavetões havia de tudo em quantidades astronómicas, bem arrumado, bem acondicionado, bem ordenado, bem classificado, com tanta delicadeza e gosto que eu passava horas e horas a olhar sem mexer, tal era fascinante, aquela biblioteca de material gráfico: papel, de várias qualidades, espessuras, formas e feitios, lápis, pretos, de cor, de carvão, de duas e três cores, grossos, finos, pequenos, grandes, embrulhados em papel de seda, por estrear, borrachas, afia-lápis, mata-borrão, envelopes, tantos envelopes e agrafadores, balanças, furadores, vários, e mais além, numas caixas deliciosas de folha, os tinteiros, de cores variadas e de várias marcas, réguas, compassos, transferidores, blocos, gordos, finos, enormes, pequeníssimos, eram horas a saltar de uma coisa para outra sem mexer em nada, a simples vista fazia a festa e empurrava a tarde até à noite, já quase à hora de voltar para casa.
Era tudo do teu avô, dizia a minha avó, com respeito e também era por isso que não me atrevia a mexer embora os dedos tremessem de vontade de mexer em tudo, apenas pelo prazer de tocar coisas tão belas, tão arrumadinhas e em tanta quantidade. Sentia-me dona de uma loja e na infância, quem não gostava de brincar às lojas? Eu tinha ali material verdadeiro para poder ter uma loja mais a sério do que aquelas bancadas de venda de fruta de plástico. E entre aquela profusão exorbitante de material, havia as canetas do avô João, estas que estão na fotografia. Verdadeiros tesouros cujas pontas deslizavam pelo papel como uma serpente: com suavidade e precisão.
Não conheci o meu avô, mas sei muito dele pelas histórias e sobretudo por este material que chegou aos meus dias e que fui admirando e usando ao longo dos anos e que hoje se limita a poucas coisas, entre elas as canetas. Para a época, algumas destas canetas eram de uma modernidade radical apenas apreciadas por verdadeiros profissionais do ramo ou então por estes aficionados devotos como o meu avô, que era médico pediatra e nada tinha a ver com o negócio de papelaria.
E é assim, com estas histórias e estes objetos venerados que reconstruo o avô que nunca conheci e sinto as afinidades que teria e tenho com ele. Imagino-o a ordenar e arrumar todo aquele material, a abrir as caixas quando as encomendas chegavam a casa, a passar as mãos delicadamente pelo papel de gramagem pesada, encher as canetas no tinteiro modernista da secretária, limpá-las, usá-las com carinho e verdadeiro deleite de colecionador, hoje uma, amanhã, para aquela ocasião, outra, o tempo decorria com bastante mais vagar e serenidade para que esses prazeres pudessem ser gozados até à última gota de satisfação. Os gozos genuínos destes pequenos prazeres da vida dilatavam o tempo e prolongavam a vida talvez não em quantidade, mas de certeza em qualidade.
A partir daqui, a partir destas canetas trazidas para o presente por pura casualidade, a história do meu avô começou a cobrar forma e a fazer parte da minha vida de hoje. Porque imaginar também é viver.
28 janeiro 2025
Memórias agradecidas
Não era porque queríamos ou gostávamos, mas sim porque era um dever e os deveres não só ocupavam uma grande parte da nossa vida com milhares de obrigações e afazeres como ameaçavam e podiam comprometer seriamente aquela outra parte feita de brincadeiras, sonhos e fantasias ...mas era assim, ser criança, na altura, para o mundo que nos rodeava e tutelava, uma fase inevitável, uma debilidade por vezes muito indesejável, uma maçada, via-se nos olhos dos pais, no tom de voz impaciente, nos beliscões que ajudavam a entrar em formação, nesses dias do dever de visita a pessoas que nos eram longínquas - habitavam os álbuns de fotografias recortadas com rendinhas como os pasteis de massa tenra - tias velhas que cheiravam a perfumes velhos, com mãos de bruxa e olhar de rapina condescendente. A lista de recomendações era interminável, não falam, não se mexem, não se riem, não fazem asneiras, aceitam tudo e dizem obrigada, sempre, ouviram? Claro que ouvíamos embora soubéssemos de cor a lenga-lenga de indicações e de contra-indicações, o senão acompanhado do chorrilho de ameaças, porque é que nos levavam a essas casas dos horrores onde podíamos perder os poucos direitos a que tínhamos direito por sermos crianças? gelados, desenhos animados, revista Tintim, sobremesa, brincadeiras? Mas levavam e acredito que gostassem que fossemos pois era uma forma de preencherem o tempo desse dever de visitar, está tão crescida, e tem uns olhos enormes, parece-se à....eu não sabia bem quem, mas era a pessoa que ficava sempre em primeiro lugar no friso das parecenças...e lá ficávamos sentados como estátuas, sem respirar, o meu irmão ganhava sempre, tinha melhores pulmões...eram horas de verdadeiro suplício, as cadeiras de pau, duras, frias, demasiado altas para os braços, as pernas que não ficavam penduradas nem aninhadas...e sim tia, não tia, obrigada tia, que bem educados que os têm, são tão bonitos, a minha mãe lançava um olhar de aprovação à capacidade de aguentarmos "a fazer pontas"(ser estátua sorridente era um suplício tão grande como aqueles exercícios de por os pés em ponta do ballet das segundas-feiras à tarde, depois da escola) tanto tempo e eu sorria-lhe de volta, agradecida por continuar a ter no ativo o conjunto de brincadeiras ameaçadas de serem suspensas sine die...era assim, ser criança quando eu era criança e ninguém se queixava nem se sentia infeliz nem frustrado nem tão-só, após essa fase, traumatizado ou vítima de abusos...fomos educados e moldados a ser adultos, era essa a finalidade de ser criança quando eu era criança, uma vez que seríamos - se tudo corresse bem - mais tempo adultos, na vida, do que crianças...era e ainda hoje me parece lógico que assim seja, viver é aprender até morrer, e os suplícios que eram as tradicionais visitas às tias velhas e feias onde a diferença com os pais era apenas a nossa estatura, fazia parte dos Manuais de Educação Infantil. E no final...não se pense que tudo era tenebroso, éramos recompensados pela tia que fosse com umas moedas e por vezes notas e uns bolos ou rebuçados, que adoçavam o final de tarde. E ao sair, a mãe, com um sorriso derretido, dava aquele abraço que, de apertado e carinhoso, iluminava a vida de brilhos tão radiantes que a sua luz ainda me chega até hoje, em forma de memória agradecida.
23 janeiro 2025
Matemática da harmonia
Quanto esplendor e magia, humildade e sabedoria, paz e energia, beleza e fantasia existem neste universo de vidas tão robustas quanto delicadas que brota no meu jardim, as hastes, a penugem, os veludos, o colorido, a folhagem, a frescura, as simetrias, as sequências, a convivência e os entrelaçados, dependências protetoras e conquistas ousadas, algoritmos por todo o lado, notas musicais, cadências que se repetem em sabedoria e eficácia. No meu jardim cresce a matemática de uma beleza que ainda não foi estudada nem decifrada nem seguida ou compreendida, somos nós os seres estranhos desviados desta equilibrada fantasia, afastados do centro de gravidade de onde brota eternamente, a matemática da harmonia.
22 janeiro 2025
O cerne da vida
21 janeiro 2025
Fogo consolador
Noite fria de um dia encharcado, bátegas bojudas a baterem teimosamente contra os vidros o dia todo e a escorregarem pelas paredes da casa, enveredando apressadas pelos sulcos sinuosos deixados no chão por chuvadas anteriores, verdadeiros riachos que arrastam as folhas murchas dos plátanos do jardim. Só os melros e outros passarinhos sem nome conhecido se passeiam alegremente no jardim, sacudindo de vez em quando os seus casacos de penas brilhantes de pérolas de água, ansiosos por apanharem insetos temerários que saíram a banhos nesta tarde inóspita onde só se está bem à frente do fogo acolhedor a crepitar moleza e conforto. Que o digam a Uva e o Tinto…
19 janeiro 2025
Momentos bons da vida
Limpei as estantes da sala. Onde guardo os livros que mais gosto e exponho os bibelots que têm um especial significado. Limpá-los com cuidado, com carinho, um a um, voltar a pô-los no sítio, olhá-los, folheá-los, seguir as memórias e a saudade que levam neles, ir atrás dos pensamentos que desprendem, como a fumaça que sobe pela chaminé da lareira, está húmido, se não fosse o exercício acima, abaixo no escadote, teria ficado enregelada. Volto a por os avós, os bisavós, os pais, os pratos, a coleção de elefantes, de leques, de pintos, de saleiros, e tantos outros objetos queridos, para quê?, não são nada tralha, há anos que o digo, já deviam saber que sou feita de tudo isto que aqui está arrumado e exposto e mais todos os momentos que em que lhes leio e releio as histórias, horas que passo a viver-me até tudo ficar brilhante para poder finalmente sentar-me, cansada mas contente, às brasas da lareira, com o meu chá de limão e gengibre, a saborear a vida nova que dei ao que de mim está exposto nas estantes da minha sala. Momentos bons da vida.
12 janeiro 2025
Fantasias
Sintra, 7:00. Madrugada fria e molhada, silenciosa e solitária. Momento único e irrepetível para viajar pelas preocupações, as alegrias, os desafios e as obrigações, o que se fez e o que teima em ficar por fazer, ano após ano, apesar das boas intenções, o que fomos, somos e gostávamos de ser e ter, o que virá, irremediavelmente, no final de tudo, a beleza que está em todo o lado se houver vontade, paciência e atrevimento. São tantas as estradas, os cruzamentos, as idas e vindas, as vozes, os gritos, os absurdos, as injustiças, tudo passa e algo fica, algo se extrai desta madrugada de chuva forte a bater nas vidraças, se se souber olhar para o lado certo do vidro. Obrigada aos reis mas não quero nada porque tudo aquilo que sei que me faz falta, já vive em mim e é esse tudo isso que desfila agora à minha frente sob a luz pálida e mortiça do nascer do dia, pronta para acontecer, basta querer. Mas só posso querer e ter o que sou. Tudo o resto, são fantasias.
6 janeiro 2025
Terras
De repente a terra começou a frisar-se e obrigada a crescer em direção ao céu, de forma pontiaguda e escarpada, alternando com precipícios abruptos e vertiginosos que desembocam em desfiladeiros sinuosos, cobertos de um branco alvo, tão alvo que, nos seus pontos mais altos se abraçaram ao azul do infinito, ali onde tudo é mais puro e raro. É como se os Homens estendessem energicamente os seus braços ao céu e oferecessem aos Deuses criadores do Universo a sua alma, a poesia mais delicada que levam dentro, o ouro da suas preces e anseios mais profundos, a sua razão de ser. Que contraste entre os dedos ossudos desta terra que buscam insistentemente o céu e a mão aberta que é a nossa terra onde o céu repousa em sossego.
30 dezembro 2024
Postais do Natal
O mundo anda esfarrapado à nossa volta e vem-nos bater à porta para lhe darmos abrigo, consolo, sustento e ânimos, que bem precisado está…e eu aqui sentada a pensar como fazê-lo, especialmente hoje, que amanhece véspera de Natal e é suposto pregar a paz e a harmonia entre os Homens. É um bom momento, aqui de guarda ao peru a dourar no forno enquanto a aurora se vai despertando de mansinho lá fora. A casa está cheia de postais dos vários Natais que já vivi, o presépio, as luzes, o calendário do advento, o pai Natal, a rena, as bolachas em forma de estrela, a mesa da Consoada onde logo mais à noite se reúnem as famílias do Condomínio Pinto, agora silenciosa e na penumbra, logo feérica e ruidosa…e é aqui que me detenho, pois é isso que me faz sentido e é para isso que nos rodeamos de símbolos e caprichamos no jantar: para viver as luzinhas que se vão acender logo mais à noite à volta da mesa: a família. Cada um deles brilha e traz luz à escuridão, música ao silêncio, gargalhadas e conversas que aquecerão o frio da noite. É isso que importa e é esse o consolo que se pode dar ao mundo: manter estas nossas luzes acesas de amizade, boa vontade, paciência, humildade, espírito de sacrifício, compreensão, alegria e dedicação. Não podemos fazer muito mais senão acreditar que com isto, com este compromisso e esta atitude alguma esperança sairá logo à noite na fumaça das lareiras acesas do Condomínio Pinto. Não somos exemplares, mas acreditamos que o caminho é este e por isso estou aqui sentada, pelo que me toca nesse processo, com a Uva e o Tinto, de guarda ao peru, enquanto lá fora nasce mais uma véspera de Natal. In seculum, seculorum!
24 dezembro 2024
A dança apaixonada da eternidade
À janela, o negro da noite a ceder já aos primeiros raios de luz, a fusão entre a calidez e o aconchego da sala onde estou e a imensidão do relento profundo do amanhecer. Os momentos de transição são sempre os mais fascinantes, quem os obra, quem os dirige, quem se ocupa de assegurar que o meu olhar sobre o que já está a acontecer, mas ainda não o é, não se quebra a meio caminho e consegue deslizar com suavidade e sem percalços para a manhã que desponta? E quem ensina a passarada a acompanhar esta dança sem guião nem partitura conhecidos com os seus chilreares de prata delicada e esses rendilhados de assobios alegres e polifónicos? Sempre pensei que o Universo nos estende a mão para entrarmos nos seus mistérios quando se despe e muda a sua roupagem de luz e procuro reter o fôlego para não interferir neste baile lento e cadenciado, apaixonado, os braços entrelaçados, entre dois momentos do dia que são inseparáveis e um só caminho até à eternidade. Só assim se explica tudo.
7 dezembro 2024
Histórias
Quantos de nós já não imaginámos vidas observando - pela beirinha do olhar - alguém que se sentou na mesa ao lado da nossa no restaurante onde fomos almoçar ou partilhámos com ela viagem, sentados na mesma fila do avião, durante umas quantas horas ou aquela outra que esperava pacientemente, como nós, para ser chamada para a consulta médica, na sala das urgências. Quem são, como se chamam, onde vivem, que fazem, serão felizes, estarão apaixonadas por alguém ou sofreram algum desgosto que as deixou amargas, que esperam, que lhes reservará o minuto a seguir, a hora depois, o dia a seguir? Que farão, quando sairem dali, qual a história que seguem, qual o destino que constroem, que amores, paixões, ódios ou indiferenças lhes vestem a alma? Na minha já completa ausência, por onde deambulo, entretida, as imagem destes transeuntes com quem me cruzei acidentalmente, já se desfocaram e no seu lugar surgiram outras novas vidas, com nomes e apelidos e destinos certos, porventura iguais aos que possuem na realidade ou diferentes porque assim entendeu a minha imaginação. Nem todos eles servem, nem todos produzem faíscas, reacendem brasas ou são candidatos a companheiros de uma viagem solitária sem rumo nem destino nem bilhete de volta. Neste momento, na sala de espera das urgências médicas, a senhora sentada à minha frente, só, de uma certa idade, pálida e seca, o casacão fechado até ao último botão e o cabelo, acinzentado cortado curto, à garçon, uma mão agarrada à carteira, na outra o bilhete com o seu número de chegada, o olhar fixo no quadro luminoso, não se mexeu e assim ficou enquanto o seu número piscava incessantemente, no quadro, de onde continuava a não tirar os olhos. O número desapareceu e no seu lugar apareceu o meu, levantei-me e dirigi-me ao gabinete que me tinha sido indicado. Boa noite, disse à senhora, mas não obtive resposta. Ali seguia, hirta como uma estátua. Quando saí, já não estava. Decidi que se chamava Adelaide.
24 outubro 2024
Conversar com a Vida
Dias de homenagem à Vida
Os dias são tão diferentes uns dos outros, talvez porque a alma - o que nos "anima" - seja uma agulha fina, delicada, diria que tão leve como uma pena que baloiça ao capricho da brisa e oscila sem cessar, sem nunca se repetir, sem guião predefinido ou objetivo certo, rumo desenhado, propósito algum, tudo depende...E entre esses dias que seguem caminhos por tonalidades tão diferentes, ainda há os que são tão singulares quanto efémeros mas não por isso menos intensos e exigentes e mobilizadores, pelo contrário, são dias em que a melodia, a tonalidade, a textura, a intensidade e a complexidade dos pensamentos que vão percorrendo as nossas fibras mais remotas, os nós centrais do nosso centro de gravidade, as extremidades mais delicadas e sensíveis das nossas memórias, esses filamentos oscilantes e luminosos que são os sentimentos, carregados de afetos, emoções, amores e desamores, angústias, medos, tormentos, alegrias, saudades, histórias, pessoas, carícias inesquecíveis e estalos sonoros que afagam tanto como corroem, todo este turbulento vendaval que nos suga, nos possui, nos domina e controla, perfeitamente dirigido e conduzido pela agulha que dita esses nossos momentos mais singulares, esses dias que valem por todos os que vivemos ou imaginamos viver, rebenta por vezes, ou quase sempre, numa onda que rola e se desenrola e desliza com uma suavidade extrema, uma cadência lenta, silenciosa, redonda, densa pela praia de areia fina e cálida onde, sob a forma de nuvem sem densidade nem espessura, desabamos em nós com uma irreprimível torrente de lágrimas grossas e brilhantes, condimentadas com o sabor e dissabor da vida, mel e fel, doces e amargas, de doçuras e raivas, todas elas apaixonadas, profunda e irremediavelmente entregues à singularidade que é ter a Vida, não há mesmo quem mais me arrebate o coração desta maneira, senão ela, a Vida, o meu maior e único amor. São os tais dias singulares, de homenagem à Vida.
18 outubro 2024
Éramos assim...
Éramos assim por que era assim, o nosso tempo, os nossos pais, as nossas casas, as nossas roupas, a nossa estética, a nossa vida, as nossas relações, as nossas brincadeiras, as nossas zangas, as nossas rivalidades, os nossos amuos, as nossas gargalhadas, a nossas poses para a fotografia, uma só, que imortalizava um momento, um só, aquele, naquele dia, com a data escrita por trás da fotografia com a caligrafia inconfundível da mãe, guardada no álbum, para recordar. Éramos três irmãos. Bernardo, Carminho, João. Carminho, João, Bernardo, João, Bernardo Carminho, rezava o papel escrito com a letra da autoridade do pai, pregado com um "pionés" atrás da porta do quarto das brincadeiras para que não houvesse zangas nem lutas à hora de ir tomar banho - 19h00 - para ficar a ver os desenhos animados (The Mighty Mouse, entre outros), que começavam a essa hora. Gostava de poder voltar para trás e saber o que sei hoje, o que vivi até hoje, e recomeçar tudo outra vez. Voltar a ser assim, como era, voltarmos os três a ser assim, como éramos. Voltarmos a ter o pai, atrás da câmara e a mãe, sentada a escrever a data por trás da fotografia. Ter aquela mesma roupa, rude e resistente, a estética sem pretensões de espécie alguma, estarmos sentados no degrau do pátio da casa do Banzão, um domingo de inverno, provavelmente, e ter a vida toda pela frente com estes dois irmãos que a vida me proporcionou e os pais que tive, nos tempos que foram aqueles de então e ...teria tido, então, a possibilidade de ouvir e fazer caso a esta voz silenciosa, mas tão clara e nítida, que hoje e então me teria inundado a alma da alegria que é ter consciência da imensa sorte que tive e tivemos em termos podido ser assim, como éramos e - em memória do meu irmão Bernardo que hoje, falta, na fotografia - ainda hoje somos.
14 outubro 2024
Vozes que sobram
Estou cansada de vozes, das vozes, do barulho que fazem, do incomodativo que podem chegar a ser por interromperem. (Já não falo dos barulhos outros que não as vozes, o que digo aqui poderá ser extrapolado para outros ruídos). As vozes, os sons que saem da boca das pessoas, digam coisas inteligentes ou disparatadas, interessantes ou desprovidas de contribuição que seja para a nossa maior felicidade, uma oitava acima ou uma oitava abaixo, melosas ou ásperas, fluídas ou com aquelas interrupções que exasperam imenso...as vozes cansam-me. E hoje em dia há uma incontinência verbal que de riacho se fez rio e que com as barragens e todas as infraestruturas e máquinas inventadas para controlar o. volume de caudais, do que for, água, ondas, vento, moeda, circulação, se transformou num delta de dimensões completamente desproporcionadas, riam-se do delta do Amazonas ou do Mekong ou dessas massas de água que desembocam a uma velocidade estonteante, arrastando consigo volumes de água que não consigo quantificar. Hoje em dia, toda a gente fala demais, alto demais, interrompe, intervém, quebra, sente-se no direito, desagua ali onde vê uma oportunidade (uma planície, por exemplo, um desvio no terreno) e desaba sobre nós com todas as palavras que conhecem dos dicionários ou que aprenderam não sei onde, sem contemplações. E repito. É indiferente o que digam ou como digam ou quando digam. A contrariedade com que hoje me tenho de debater, é o simples facto de produzirem sons quando não devem, ninguém lhes pediu, não são esperados nem trazem felicidade mais do que aquela que existe - sempre - no silêncio. Um silêncio que não tem que ser necessariamente a ausência de sons, nada disso. Um silêncio feito de sons que a sábia e respeitosa e delicada Natureza nos proporciona e que contribuem, pela forma como se articulam. entre si, se encaixam uns nos outros, se complementam, se acrescentam - sem Maestro - para criar o silêncio que ouvimos. Porque nós ouvimos o silêncio, é mentira quando se diz que o silêncio é a ausência completa de som. Não é! As vozes não humanas com que a Natureza nos brinda são o silêncio que precisamos para nos reencontrarmos, para nos ouvirmos, para falarmos connosco, com os que somos, para apreciarmos os pequenos detalhes com que a alma oscila, o coração bate, as pálpebras descem, a água desce pelo esófago, o sono nos vence, o despertar nos acorda, devagarinho, no silêncio da madrugada. Pare-se de falar. Tirem o som às vozes. Aprendam a dizer sem ter que vomitar chorrilhos de palavras que ditas...perdem toda a beleza e a poesia que a vida tem, neste silêncio.
11 outubro 2024
Os CVs onde a imaginação nos leva...
Eu sou uma vagabunda que leva às costas, entre os braços, nas algibeiras e em sacos, muitos, milhares de interrogações, questões, dúvidas, perguntas, dilemas, de tudo um pouco, sou incapaz de não acolher qualquer um deles quando se me cruzam no caminho e se colocam à minha frente com aqueles olhos de doçura pedinte e tão intencionalmente manipuladores da minha incapacidade para dizer não, um não racional e higiénico, adulto, o que passaria pela cabeça de qualquer um. Eles sabem que eu sou fácil, fraca e, no meu íntimo uma irremediável apaixonada das interrogações. Nada a fazer. No entanto - como eu adoro esta locução conjuntiva, um dos pilares mestres da construção do Universo - não sou apenas e tão só uma colecionadora de membros da família das interrogações. O que verdadeiramente me ocupa, quando acolho uma dessas almas nas minhas mochilas e vagabundeio pelos trilhos do pensamento, é a busca das palavras ou palavras que encaixam nessas interrogações. Não tenho lugar, dentro de mim, para todas as palavras que podem responder a todas as dúvidas, há quem gentilmente as tenha classificado, alinhado, ordenado em livros, dicionários, bibliotecas e agora até no mundo virtual do potencialmente existente até ser descarregado e impresso. As palavras foi a invenção que fez do Ser Humano um ser diferente dos outros, que usam outras linguagens para responder às interrogações que os assaltam, sabe-se lá mais do que isto que estou a dizer. As palavras são o resultado de um processo hipersofisticado de reflexão que deve ter demorado milhares de anos até se concretizarem naquele conjunto de letras que vão, depois, parar aos livros que lemos. Palavras, associações de palavras, jogos de palavras, frases, textos, histórias, contos, poemas...tudo ao serviço da resposta às questões que em nós habitam. A minha vida é isto: recolher interrogações, por aí, e oferecer-lhes palavras que possam emparelhar-se com elas. Sou uma casamenteira, na verdade, um Tinder onde uma dúvida pode vir sempre à procura de uma palavra que a preencha e faça avançar o Universo ou, segundo as últimas novidades da Ciência, mantenha o Universo no fio da navalha onde está, à beira de abismos que é preferível não conhecer. É um bom CV, este que acabo de inventar para mim. A imaginação é assim...a gente dá-lhe guita e nunca sabe onde vai parar.
1 setembro 2024
Por fim, o Universo abranda
Há sempre uma sardinheira em flor, num dia pardacento e aguado, de humor sereno e alma em paz. São paisagens necessárias, desejadas, como quem diz, por fim a harmonia e o equilibrio, a descida suave e progressiva para o interior, a janela encostada, a manta para o anoitecer, esfria, apetece recolher os sons, as cores, o bulício, a animação, a luz que fere e guardá-las nas palavras que enchem o diário, aconteceu, hoje será diferente, o mar morrerá doce na praia sem ondas que o empurrem, feérico e alegre contra as rochas , as gaivotas, da cor do céu, passearão tranquilamente as suas pegadas pelo areal, sem guinchar, também elas sabem que o mundo baixa de intensidade às portas do mês de setembro, quando começa verdadeiramente a vida, se forja o que somos, se decide o que seremos. Porém, entre a imensa calmaria e sossego onde o olhar pousa e repousa, há sempre aquela sardinheira rubra e fogosa que destaca e destoa e que mantém viva a chama que voltará a brilhar após o renascer do Universo, para além deste horizonte de recolhimento onde entramos, por fim, já era hora. A sardinheira também é nossa irmã.
30 agosto 2024
O eu interrogação
Flâner
sans savoir d'où je viens où je vais
les promenades ne sont point de parcours
sinon d’aller et de retours,
je tourne en ronds
sans réponses ni d’issues
ma carte est ma pensée
mon âme, mon essence
je flâne, partout et nulle part
je ne cherche rien ni personne
ni de réponses, même pas ton épaule
je suis seule, je flâne, tout court,
je suis heureuse.
29 julho 2024
Àlex Susanna
Sabias, amigo, que tenho chorado dia e noite a tua morte sem que saiba explicar o porquê desta violenta descarga emocional que percorre as minhas veias e a minha alma e desaba em lágrimas que brotam pela tua ausência, mas que, inexplicavelmente, também me ajudam a superá-la, serás tu, a dar-me a mão para que não me deixe levar pela emoção que em nada ajuda a seguir em frente aproveitando todo o bom que deixaste entre nós. Sintra é a paisagem ideal para ir bem ao fundo na dor que me atormenta e ressurgir pelas cores com que nos renova a alma de esperança e pelos horizontes que nos oferece até perder o mar de vista. Choro de tristeza e de alegria, de dor e de esperança, de tormento e de paz. São lágrimas que não acabam uma vida senão que a começam. A maior homenagem que posso pagar ao meu amigo que hoje habita o Universo e é mais uma das cores que nos fazem chorar e ao tempo nos animam a olhar com alegria para o futuro. É isso.
29 julho 2024
Lição de vida de um amigo que acabou de morrer
No sábado morreu um amigo não de longa data, mas que em pouquíssimo tempo (um escasso ano) conquistou a minha alma e se infiltrou no meu pensamento quase quotidianamente tanto pelos momentos e conversas que partilhámos como pelos livros e poemas que dele fui lendo ao longo deste último ano.
Foi a primeira vez na minha vida que me despedi conscientemente de alguém que sabia que ia morrer pouco tempo depois. Foi ele próprio que o anunciou, sentados na sala da sua maravilhosa casa em Gelida (Catalunha) rodeado da mulher, do filho mais velho e de mais dois amigos, com uma inteireza e uma força interior que fiquei imóvel, de pedra, silenciosa, hirta, sentindo como as lágrimas iam caindo sem pudor nem culpa pela face, sem porém poder desviar o olhar do seu e das suas palavras descarnadas e cruas, sem adornos nem amortizadores nem desvios ou subterfúgios, um olhar baço mas vital, com o fio de vida que lhe restava posto inteiro na firmeza e na dignidade com que nos anunciava que esta ia ser a última vez que nos víamos entre os vivos.
Morreu no sábado (quinze dias certos depois de nos termos visto, como nos avisou), rodeado do seus, consciente de que tinha chegado o último momento, sabendo exatamente como iria acontecer, o que aconteceria e que após a morte cerebral tudo se acabaria. Sei que sofreu muito por ver que a vida, o que mais prezava e que tinha tão cheia de tantos projetos e ideias e conversas e livros e conferências e exposições, se acabaria poucos dias depois daquele sábado que passámos em Gelida, até anoitecer. Tinha tanto para fazer ainda...
E agora? Agora fica a memória deste momento de partilha derradeira que foi especialmente intensa porque todos sabíamos que já não poderíamos ter mais uma destas tardes de conversa rica, colorida, profunda, diversa, que percorreu em poucas horas todos os Capítulos da maravilhosa História da nossa vida nesta terra, o ondular do enredo da novela humana que, apesar das nuances, é semelhante a todos. Falámos das mães, das casas de família, dos pais, dos irmãos, do casamento, de Deus, da inveja, da amizade, do poder, do amor, da poesia, das paisagens, das obras, das raízes e dos frutos a que damos origem. Falámos de se nos veríamos algum dia e a questão ficou sem resposta pelo cansaço, pelo avançar da hora, pelo chegar do inevitável momento em que dissemos o último adeus, aquele que não tem volta na ponta nem futuro. Um abraço eterno. "A reveure, Carmo..."
Agora fica este sentimento forte de irmandade e amizade que passou a habitar o meu sistema emocional e que leva um nome que sei que é o dele. Apesar de ele detestar que se desse primazia às emoções em vez da Razão. Seja. Não sei como racionalizar este sentimento de perda irreparável de uma pessoa que sei que já tinha e ia ter, no futuro próximo, uma importância capital na minha vida. E este último encontro antes da sua morte ficará para sempre como um dos momentos mais intensos, autênticos e emotivos da minha vida. A morte também é amor.
Lição a tirar: este ano deveria ter ido muitas mais vezes a Barcelona disfrutar dele e do que tinha para ensinar e explicar sobre a vida, a poesia, a escrita e outras coisas que nos ligavam. Estúpida. Não me perdoo.
29 julho 2024
Podia ser
ou simples planta do meu jardim
e não ser quem sou,
desertora de mim,
que falo melhor a língua do vento
quando sopra à minha beira
e me volteia, bailarino sedutor.
Podia ser a erva
rendilhada de pérolas de orvalho,
que leva a mensagem de amor
do jasmim em flor
ao jovem pássaro de bico dourado
que vem matar a sede logo pela manhã
ao ribeiro perfumado de alecrim
Podia ser um desses vultos
imponentes e severos
enraizados nas profundezas
e de braços erguidos
e abraçados à Natureza
exuberante e despreocupada
que me bate de mansinho
logo pela manhã
para conversar
nessa língua
de alguém
que sinto
mas não falo
que percebo
mas não escrevo
que podia ser
mas não sou.
25 julho 2024
Obrigada
A jantar à luz do Crepúsculo dos Deuses. Não existe na vida cenário mais bonito do que aquele que é criado pela Natureza. A nós, o privilégio de usufruí-lo e de tentar entendê-lo ou de como incorporar esta “linguagem” na nossa, bem mais espartilhada em conceitos que não ajudam muito a navegar, sem mais, nestas cores. Quando assisto a um espetáculo assim, com este vigor e intensidade, nunca deixo de me perguntar qual o nosso papel e contributo? Não vejo nenhum… portanto, inclino-me humildemente ante a grandiosidade do que outros seres, que não nós, sabem organizar. Obrigada!
22 julho 2024
Adeus amigo!
A vida que vale a pena viver, reter e reviver é a que é feita de momentos de grande intensidade seja porque o lugar onde estes momentos acontecem nos é particularmente próximo, seja porque a convivência com as pessoas que estão presentes ali, naquele momento nos suga o interesse, seja porque as pessoas com quem partilhamos esses momentos nos são particularmente queridas. Em especial quando sabemos que uma delas nos vai deixar nas próximas semanas e nos requer para que possamos passar juntos um último momento antes que a morte a leve para sempre. Por incrível que pareça e por incrível que as lágrimas que nos vão caindo pela face não tenham remédio e vão rolando sem pudor e com toda a obviedade, a verdade é que é possível viver a amizade sem que a sentença de morte interfira na conversa, nas histórias que se vão contando e comentando. No almoço que se prepara em conjunto, nos tintos com pedigree que se vão abrindo, nos poetas que se vão citando, nos livros, pinturas, exposições que se viveram em tempos, quando todos éramos uns adolescentes quarentões cheios de garra e pretensões e no final do dia vem finalmente o abraço que abarca toda a alegria e dor , toda a ternura e carinho, toda a cumplicidade e partilha, todos os anos vividos, as histórias, as imagens, os êxitos e fracassos, e também aquilo que a vida poderia ainda proporcionar mas que já não o irá fazer. A amizade é viver a vida, sem dúvida. Mas é sobretudo a partilha do último adeus com amor e integridade. Com inteireza. Com coragem. Adeus, amigo. Vamo-nos com o por do sol! Foi uma sorte conhecer-te e poder dizer que fomos amigos. Até sempre. As lágrimas são um consolo da sinceridade com que te estimámos e estimamos até aos teus últimos dias!
13 julho 2024
Razão de Ser
29 junho 2024
Moonlight Serenade
Nem todos têm a sorte que a vaidosa da lua venha bater à janela no final da noite, para mostrar como o mundo fica mais belo quando iluminado pelo seu brilho, ainda que este lhe seja emprestado pelo sol. A serenata que me dedilhou com os seus dedos de feiticeira, empoleirada na serra que foi batizada com o seu nome, fala-me desse palácio de renda branca e filigrana delicada que esconde o seu amor proibido pela Natureza, esses bosques baixos e frondosos, armados de trepadeiras densas e musgos fartos que o resguardam zelosamente do feitiço que leva consigo o brilho sedutor desta lua desesperadamente apaixonada. Amanhece irremediavelmente e a lua desaparece antes que seja vista a chorar o seu amor impossível e a alvura brilhante do palácio esmorece para mais um dia sem história. Que é durante o sono escuro e silencioso da noite que os deuses e as musas, as fadas e os astros, os magos e as feiticeiras que vivem nesta Serra abençoada de palácios e grutas e lagos e folhagens escrevem as histórias de amor que os humanos, ajoujados pelos fardos da vida, só sabem sonhar. Juraria ter ouvido a lua a cantar uma serenata à janela…estarei cada vez lunática…bom dia!
 
 




































