Dizem que recordar é viver. E é verdade. A vida, no presente, está cheia do nosso passado, são vezes sem conta, em que se abrem túneis de passagem a épocas remotas da nossa história que nos levam a viver episódios como se realmente estivessem a acontecer hoje. Com sons, cheiros, cores e sensações conjugadas no presente. Mas não só de recordações reais, que aconteceram no passado, vive a vida do presente. Ainda que não tenha vivido algumas das histórias do passado, posso reconstruí-las a partir de coisas que chegaram até hoje, às minhas mãos e que falam por si e me contam histórias que não sei se são verdade, mas que participam ativamente no meu presente. Ontem choquei com estas canetas, esquecidas em estojos que habitavam o fundo de uma gaveta comprida e escura. Sabia que as tinha, fiquei com imensa "tralha" que vivia nas gavetas das cómodas da minha avó que tinha pertencido ao meu avô João, pai do meu pai. Eu sabia que ele era um grande apreciador de material de papelaria, de qualidade, naqueles gavetões havia de tudo em quantidades astronómicas, bem arrumado, bem acondicionado, bem ordenado, bem classificado, com tanta delicadeza e gosto que eu passava horas e horas a olhar sem mexer, tal era fascinante, aquela biblioteca de material gráfico: papel, de várias qualidades, espessuras, formas e feitios, lápis, pretos, de cor, de carvão, de duas e três cores, grossos, finos, pequenos, grandes, embrulhados em papel de seda, por estrear, borrachas, afia-lápis, mata-borrão, envelopes, tantos envelopes e agrafadores, balanças, furadores, vários, e mais além, numas caixas deliciosas de folha, os tinteiros, de cores variadas e de várias marcas, réguas, compassos, transferidores, blocos, gordos, finos, enormes, pequeníssimos, eram horas a saltar de uma coisa para outra sem mexer em nada, a simples vista fazia a festa e empurrava a tarde até à noite, já quase à hora de voltar para casa.
Era tudo do teu avô, dizia a minha avó, com respeito e também era por isso que não me atrevia a mexer embora os dedos tremessem de vontade de mexer em tudo, apenas pelo prazer de tocar coisas tão belas, tão arrumadinhas e em tanta quantidade. Sentia-me dona de uma loja e na infância, quem não gostava de brincar às lojas? Eu tinha ali material verdadeiro para poder ter uma loja mais a sério do que aquelas bancadas de venda de fruta de plástico. E entre aquela profusão exorbitante de material, havia as canetas do avô João, estas que estão na fotografia. Verdadeiros tesouros cujas pontas deslizavam pelo papel como uma serpente: com suavidade e precisão.
Não conheci o meu avô, mas sei muito dele pelas histórias e sobretudo por este material que chegou aos meus dias e que fui admirando e usando ao longo dos anos e que hoje se limita a poucas coisas, entre elas as canetas. Para a época, algumas destas canetas eram de uma modernidade radical apenas apreciadas por verdadeiros profissionais do ramo ou então por estes aficionados devotos como o meu avô, que era médico pediatra e nada tinha a ver com o negócio de papelaria.
E é assim, com estas histórias e estes objetos venerados que reconstruo o avô que nunca conheci e sinto as afinidades que teria e tenho com ele. Imagino-o a ordenar e arrumar todo aquele material, a abrir as caixas quando as encomendas chegavam a casa, a passar as mãos delicadamente pelo papel de gramagem pesada, encher as canetas no tinteiro modernista da secretária, limpá-las, usá-las com carinho e verdadeiro deleite de colecionador, hoje uma, amanhã, para aquela ocasião, outra, o tempo decorria com bastante mais vagar e serenidade para que esses prazeres pudessem ser gozados até à última gota de satisfação. Os gozos genuínos destes pequenos prazeres da vida dilatavam o tempo e prolongavam a vida talvez não em quantidade, mas de certeza em qualidade.
A partir daqui, a partir destas canetas trazidas para o presente por pura casualidade, a história do meu avô começou a cobrar forma e a fazer parte da minha vida de hoje. Porque imaginar também é viver.
28 janeiro 2025

 
 
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