Não era porque queríamos ou gostávamos, mas sim porque era um dever e os deveres não só ocupavam uma grande parte da nossa vida com milhares de obrigações e afazeres como ameaçavam e podiam comprometer seriamente aquela outra parte feita de brincadeiras, sonhos e fantasias ...mas era assim, ser criança, na altura, para o mundo que nos rodeava e tutelava, uma fase inevitável, uma debilidade por vezes muito indesejável, uma maçada, via-se nos olhos dos pais, no tom de voz impaciente, nos beliscões que ajudavam a entrar em formação, nesses dias do dever de visita a pessoas que nos eram longínquas - habitavam os álbuns de fotografias recortadas com rendinhas como os pasteis de massa tenra - tias velhas que cheiravam a perfumes velhos, com mãos de bruxa e olhar de rapina condescendente. A lista de recomendações era interminável, não falam, não se mexem, não se riem, não fazem asneiras, aceitam tudo e dizem obrigada, sempre, ouviram? Claro que ouvíamos embora soubéssemos de cor a lenga-lenga de indicações e de contra-indicações, o senão acompanhado do chorrilho de ameaças, porque é que nos levavam a essas casas dos horrores onde podíamos perder os poucos direitos a que tínhamos direito por sermos crianças? gelados, desenhos animados, revista Tintim, sobremesa, brincadeiras? Mas levavam e acredito que gostassem que fossemos pois era uma forma de preencherem o tempo desse dever de visitar, está tão crescida, e tem uns olhos enormes, parece-se à....eu não sabia bem quem, mas era a pessoa que ficava sempre em primeiro lugar no friso das parecenças...e lá ficávamos sentados como estátuas, sem respirar, o meu irmão ganhava sempre, tinha melhores pulmões...eram horas de verdadeiro suplício, as cadeiras de pau, duras, frias, demasiado altas para os braços, as pernas que não ficavam penduradas nem aninhadas...e sim tia, não tia, obrigada tia, que bem educados que os têm, são tão bonitos, a minha mãe lançava um olhar de aprovação à capacidade de aguentarmos "a fazer pontas"(ser estátua sorridente era um suplício tão grande como aqueles exercícios de por os pés em ponta do ballet das segundas-feiras à tarde, depois da escola) tanto tempo e eu sorria-lhe de volta, agradecida por continuar a ter no ativo o conjunto de brincadeiras ameaçadas de serem suspensas sine die...era assim, ser criança quando eu era criança e ninguém se queixava nem se sentia infeliz nem frustrado nem tão-só, após essa fase, traumatizado ou vítima de abusos...fomos educados e moldados a ser adultos, era essa a finalidade de ser criança quando eu era criança, uma vez que seríamos - se tudo corresse bem - mais tempo adultos, na vida, do que crianças...era e ainda hoje me parece lógico que assim seja, viver é aprender até morrer, e os suplícios que eram as tradicionais visitas às tias velhas e feias onde a diferença com os pais era apenas a nossa estatura, fazia parte dos Manuais de Educação Infantil. E no final...não se pense que tudo era tenebroso, éramos recompensados pela tia que fosse com umas moedas e por vezes notas e uns bolos ou rebuçados, que adoçavam o final de tarde. E ao sair, a mãe, com um sorriso derretido, dava aquele abraço que, de apertado e carinhoso, iluminava a vida de brilhos tão radiantes que a sua luz ainda me chega até hoje, em forma de memória agradecida.
23 janeiro 2025
 
 
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