No sábado morreu um amigo não de longa data, mas que em pouquíssimo tempo (um escasso ano) conquistou a minha alma e se infiltrou no meu pensamento quase quotidianamente tanto pelos momentos e conversas que partilhámos como pelos livros e poemas que dele fui lendo ao longo deste último ano.
Foi a primeira vez na minha vida que me despedi conscientemente de alguém que sabia que ia morrer pouco tempo depois. Foi ele próprio que o anunciou, sentados na sala da sua maravilhosa casa em Gelida (Catalunha) rodeado da mulher, do filho mais velho e de mais dois amigos, com uma inteireza e uma força interior que fiquei imóvel, de pedra, silenciosa, hirta, sentindo como as lágrimas iam caindo sem pudor nem culpa pela face, sem porém poder desviar o olhar do seu e das suas palavras descarnadas e cruas, sem adornos nem amortizadores nem desvios ou subterfúgios, um olhar baço mas vital, com o fio de vida que lhe restava posto inteiro na firmeza e na dignidade com que nos anunciava que esta ia ser a última vez que nos víamos entre os vivos.
Morreu no sábado (quinze dias certos depois de nos termos visto, como nos avisou), rodeado do seus, consciente de que tinha chegado o último momento, sabendo exatamente como iria acontecer, o que aconteceria e que após a morte cerebral tudo se acabaria. Sei que sofreu muito por ver que a vida, o que mais prezava e que tinha tão cheia de tantos projetos e ideias e conversas e livros e conferências e exposições, se acabaria poucos dias depois daquele sábado que passámos em Gelida, até anoitecer. Tinha tanto para fazer ainda...
E agora? Agora fica a memória deste momento de partilha derradeira que foi especialmente intensa porque todos sabíamos que já não poderíamos ter mais uma destas tardes de conversa rica, colorida, profunda, diversa, que percorreu em poucas horas todos os Capítulos da maravilhosa História da nossa vida nesta terra, o ondular do enredo da novela humana que, apesar das nuances, é semelhante a todos. Falámos das mães, das casas de família, dos pais, dos irmãos, do casamento, de Deus, da inveja, da amizade, do poder, do amor, da poesia, das paisagens, das obras, das raízes e dos frutos a que damos origem. Falámos de se nos veríamos algum dia e a questão ficou sem resposta pelo cansaço, pelo avançar da hora, pelo chegar do inevitável momento em que dissemos o último adeus, aquele que não tem volta na ponta nem futuro. Um abraço eterno. "A reveure, Carmo..."
Agora fica este sentimento forte de irmandade e amizade que passou a habitar o meu sistema emocional e que leva um nome que sei que é o dele. Apesar de ele detestar que se desse primazia às emoções em vez da Razão. Seja. Não sei como racionalizar este sentimento de perda irreparável de uma pessoa que sei que já tinha e ia ter, no futuro próximo, uma importância capital na minha vida. E este último encontro antes da sua morte ficará para sempre como um dos momentos mais intensos, autênticos e emotivos da minha vida. A morte também é amor.
Lição a tirar: este ano deveria ter ido muitas mais vezes a Barcelona disfrutar dele e do que tinha para ensinar e explicar sobre a vida, a poesia, a escrita e outras coisas que nos ligavam. Estúpida. Não me perdoo.
29 julho 2024

 
 
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